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Opinião: Sobre Rep Festival, protagonismo e cuidado

Artigo de opinião assinado por Ana Paula Paulino, colunista do POPline.Biz é Mundo da Música

REP Festival. Foto: Reprodução da Internet

Eu pensei em começar minha coluna no Popline.Biz de uma forma leve e descontraída, mas nem sempre é possível fugir do aqui e agora, ainda mais quando se é uma mulher preta no mercado musical e o assunto do momento é o Rep Festival.

Esse festival já havia me chamado atenção na edição de 2022 por conta da grandiosidade proposta e, posteriormente, pelas polêmicas que precederam a edição de 2023: o line-up com artistas femininas que não eram, efetivamente, da cena; a foto da equipe 100% branca por trás de um festival sobre cultura preta/periférica; a inexistência da oferta de ingressos a preços acessíveis.

 A cada nova polêmica, os comentários informais na roda dos amigos produtores apontavam soluções potencialmente palpáveis, mas que não parecem terem sido buscadas pela produção do evento em nenhum momento (ao menos, não com a celeridade e atenção necessárias). Uma curadoria diversa com pessoas da cena, uma parceria entre produtoras de eventos prezando a representatividade e união do movimento… As possibilidades eram tantas! Mas como sempre, até culminar em algum problema que necessite de uma gestão de crise gigantesca, a “galera” nunca nos chama para sentar à mesa.

REP Festival. Foto: Reprodução da Internet

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Aparentemente, a gota d’água  no combo de polêmicas foi a mudança do local do evento. Acompanhei a indignação do público por conta da distância, da dificuldade de acesso, entre outros. Segundo um dos organizadores, a mudança se deu por conta de um empecilho burocrático com a Prefeitura do Rio e a solução foi recorrer ao local que tinha sido escolhido para a celebração de uma missa do Papa Francisco, em 2013.

O que me assustou foi descobrir que esse mesmo espaço, tinha um histórico: poucos dias antes da referida missa, o local de realização da mesma foi alterado. O motivo? Região de solo úmido (pântano, segundo os moradores do bairro), sujeita a alagamento, especialmente em período de chuvas. Dez anos depois, em pleno verão carioca (tradicionalmente, mega chuvoso), assistimos a uma amostra do que poderia ter ocorrido, caso a missa do Papa tivesse sido mantida por lá. 

REP Festival. Foto: Reprodução Internet

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Creio que a questão do espaço foi apenas mais um agravante na crise que se instaurou muito antes disso. Depois de ver os relatos nas redes sociais, conversar com amigos que foram ao evento e parceiros que tiveram seus artistas contratados, é difícil acreditar na sucessão de erros como simples inocência. Foi então que uma amiga me atentou para algo ainda mais assustador: são sempre eventos de rap, funk e de cultura periférica em que erros grosseiros são recorrentes. Parece que com os nossos, a régua da entrega é outra.

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O público e artistas de outros segmentos estariam suscetíveis aos mesmos erros? Já viram algo desse nível acontecer em um evento de música erudita, rock, sertanejo? Ou até mesmo pop?

Provavelmente não e os motivos para isso são variados: quem faz evento de sertanejo, por exemplo, geralmente vive essa realidade, são empresários ligados ao agronegócio ou  escritórios gigantes que cresceram através da música sertaneja; marcas ainda investem mais dinheiro em eventos de outros segmentos, mesmo utilizando o hype da cultura preta/periférica como posicionamento de imagem; artistas do sertanejo e pop facilmente se recusariam a se apresentarem em local com uma infra inferior ao padrão que estão acostumados.

Acontece que quem é do funk e do rap já teve que fazer tanta coisa para sobreviver na música, que seria “um absurdo” para os “grandes contratantes” ver um artista periférico se recusar a tocar em um evento que prometia tanto, né?!

Mas, para esses artistas, o que importa mesmo são os fãs e tivemos uma prova do respeito incondicional para com eles no primeiro dia de festival. Quem se apresentou, o fez por amor e gratidão às pessoas que ali compareceram e permaneceram, apesar das condições que o evento ofereceu. Quem não arredou o pé mesmo debaixo de chuva, mesmo no meio da lama para ver o ídolo no palco, é quem torna possível o sonho do artista que quer viver de música.

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Coincidência ou não, o evento era de rap. Para quem não participa do movimento e olha de fora, parece mais uma vez que ritmos periféricos estão diretamente ligados ao amadorismo ou falta de profissionalismo. Mas quando falamos de rap e funk, quem produz os grandes eventos? É quem faz o rolê acontecer de verdade ou quem, de alguma forma, se apropria disso? Se deu tão errado, não seria preciso olhar mais profundamente para o todo e ver que o problema começou muito antes da mudança de local, da estrutura, da lama, do público e dos artistas revoltados no palco e fora dele? Seria esse um caso isolado ou uma prova de que é um problema sistêmico?

REP Festival é criticado nas redes sociais por falta de estrutura (Foto: Reprodução de Internet)

Vou chamar o ocorrido do fim de semana de um dos maiores aprendizados sobre o que “não se fazer” em relação a eventos no Brasil… Muitas vezes, dar um passo para trás é melhor do que dar dois passos em falso e cair no abismo por não querer cancelar o festival. Um exemplo disso foi o Spanta de 2022 que, mesmo com estrutura montada e tudo certo para o início do evento, foi cancelado com menos de 48 horas antes do primeiro dia do festival por conta da  nova onda de casos de covid no país. Para o Rep Festival, os prejuízos serão bem maiores do que a dor de cabeça que daria um possível cancelamento ou adiamento dessa edição.

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REP Festival. Foto: Reprodução da Internet

Aprendi com a ancestralidade e com a vida que nós pretos cuidamos dos nossos porque, como diz o Emicida, “tudo que nós tem é nós” e isso pode ser usado literalmente PARA TUDO e A TODO MOMENTO!

Nesse episódio, faltou cuidado… Cuidado com a própria marca, com o público, artistas, marcas parceiras, fornecedores e trabalhadores que estavam lá. Cuidado na comunicação e na transparência antes e durante o festival. Ouso afirmar que uma liderança diversa e ativa na tomada de decisão não permitiria que a sequência de polêmicas e erros envolvendo o festival ocorresse.

Estou falando sobre Rep Festival hoje, mas eu poderia falar o mesmo sobre diversos festivais, marcas e empresas bem sucedidas que têm uma dinâmica estrutural semelhante. A diferença entre eles? Não tiveram que lidar com essa gestão de crise ainda, mas se tratando de pink e black money, sinto que vai ser difícil para qualquer organização escapar disso a médio-longo prazo.

O que fica é um alerta para a “galera”, um pensamento que minha irmã (e sócia) Isaura uma vez me falou: se quer ser um verdadeiro aliado, é preciso aprender a ser coadjuvante na história em que outros grupos devem ser os protagonistas. E ser protagonista, nesse caso, não é só colocar artista no palco, mas garantir o assento à mesa com poder de decisão!

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A arte sempre esteve no caminho da mineira Ana Paula Paulino. Dançarina desde os 3 anos, a atual empresária e produtora se envolveu com o meio cultural de Belo Horizonte bem cedo, mas foi apenas após sua ida definitiva para o Rio de Janeiro em 2014, que ela descobriu sua verdadeira vocação para o gerenciamento artístico e planejamento de carreira musical.
Bacharel em Relações Públicas pela UFMG e indicada à categoria “Profissional do Ano” do WME Awards 2022, Ana Paula é uma das sócias da Ubuntu Produções, juntamente com a irmã Isaura Paulino.
Criada em 2015, a Ubuntu objetiva ser força motriz, alavancando iniciativas, carreiras, talentos e gerindo sonhos, além de pensar estrategicamente em projetos e ações que agregam valor e possibilitam a visibilidade de segmentos, pessoas e anseios, que merecem mais palco.
Além das áreas de produção e gestão cultural, planejamento e gestão de carreiras artísticas, a Ubuntu Produções é também uma editora/ gravadora, responsável pelos lançamentos e gerenciamento das produções musicais e audiovisuais de seus próprios artistas.
Além de desenvolver grande parte das estratégias relacionadas aos artistas ligados à empresa – como a funkeira @mccarol -, Ana Paula Paulino também atua como curadora, tendo participado de projetos como Red Bull Music Pulso; os festivais Rider #DáPraFrazer, Conexidade, entre outros; além de ter integrado a curadoria do Edital Natura Musical 2021. Já atuou na direção e/ou concepção de clipes de artistas como Heavy Baile, MC Carol e Abronca.
É também ativista, palestrante e foi speaker do TEDx São Paulo, sob o tema #ideiassnegrasimportam, em novembro de 2020.