Opinião: Desmistificando a venda de catálogo de artistas
Artigo de opinião assinado por João Luccas Caracas, para o POPline.Biz é Mundo da Música
Se você acompanha as notícias do mercado musical, certamente já deve ter lido alguma matéria envolvendo nomes de artistas lendários e os valores grandiosos da venda de seus catálogos de música. E por que artistas venderiam suas músicas e por que esses valores são tão altos?
Para entender como isso funciona na prática, primeiro é necessário compreender o que de fato está sendo vendido e porque alguém pagaria um valor tão elevado por esse repertório, e em seguida entender detalhes básicos de como funciona o mercado fonográfico, entre elas as diferenças entre obra e fonograma.
Leia Mais:
- Opinião: Como aparecer nas redes? Marina Mattoso entrevista Yasmin Torres, A&R na Believe
- Opinião: Um recado para os — jovens — artistas
- Opinião: Confira novas bandas e artistas para ouvir em 2022
A diferença entre obra e fonograma
Na música temos a obra (composição) e o fonograma (gravação, fixação sonora). Um exemplo prático que costumo citar é “Garota De Ipanema”: por exemplo, a obra que todos conhecem é composta por Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e só existe uma. Agora, gravações da “Garota de Ipanema”, existem milhares diferentes. Em uma obra, autores e compositores compõem essa obra, para ela ser interpretada por algum intérprete, no caso o artista, no fonograma.
A exploração de obras e fonogramas geram uma remuneração, o que chamamos de royalties. E no mercado atual, os principais rendimentos vem principalmente de duas fontes principais: a execução pública e o digital.
A remuneração no mercado da música
Os rendimentos de execução pública são recolhidos e distribuídos pelo ECAD, através de sete associações: Abramus, Amar, Assim, Sbacem, Socinpro, Sicam e UBC. Quando uma música gravada é executada para um público, seja em shows, rádio, TV ou outros meios, 2/3 do rendimento são pagos para os compositores da obra, e 1/3 restante é pago para os intérpretes, produtores fonográficos e músicos acompanhantes, em porcentagens diferentes.
Já no âmbito digital, as remunerações obedecem a contratos firmados com as plataformas digitais junto às gravadoras e editoras, onde a exploração da obra é paga para os compositores via editora, e a do fonograma é pago para os artistas via gravadoras ou distribuidoras de acordo com seus contratos individuais.
Quando um artista vende o seu catálogo, ele pode escolher quais dessas fontes gostaria de negociar: apenas as obras, os fonogramas, apenas o digital ou a execução pública, e por aí vai.
A venda do catálogo de Bob Dylan
Usando o conhecido caso de Bob Dylan como exemplo, suas obras foram vendidas para a Universal Music Publishing, editora da Universal Music e os fonogramas para a gravadora Sony Music, por centenas de milhões de dólares em ambas as negociações.
E por que suas músicas valem tanto? Bom, estamos citando um dos maiores hitmakers da história da música internacional. São obras que geram milhões de dólares por ano, há décadas, em todos os cantos do mundo.
Quando olhamos para trás, vemos um histórico bastante consolidado da performance dessas obras. E é extremamente provável que, por serem “eternas” e sempre ressignificadas através de novas gravações, elas estejam valorizando e acompanhando o crescimento do mercado global.
Outro ponto é a língua. O fato de serem músicas interpretadas em inglês, onde as barreiras de linguagem são reduzidas devido a globalização, faz com que sejam consumidas em todo o planeta.
Bob Dylan compôs obras que ficaram famosas em suas interpretações e outras que ficaram maiores ainda na voz de outros artistas, como a gravação de “Knockin’ On Heaven’s Door”, interpretada por Guns N’ Roses. De acordo com a Universal Music Publishing, as suas obras já foram gravadas mais de 6000 vezes. Essa é justamente a graça da composição – ela pode se tornar ainda maior sendo interpretada por outros artistas. E a obra é super escalável, podendo ser multiplicada através de novas roupagens, remixes etc – e assim também sendo readequada para outros públicos. Já os fonogramas mais valiosos tendem ser as gravações clássicas, que vão tocar para sempre, como os fonogramas do Legião Urbana que contém as vozes de Renato Russo, por exemplo.
Tudo isso já bastaria para explicar o porquê do valor ser tão alto, uma vez que adquiridos tais direitos, o novo titular poderá usufruir desse rendimento pelos anos seguintes, trabalhando essas composições e fonogramas para gerar uma receita ainda maior.
Os tão falados “múltiplos”
De acordo com o site Music Business Worldwide, a negociação do catálogo de Bob Dylan foi de cerca de USD 300M, correspondendo a um múltiplo aproximado de 25 vezes.
O que significa esse múltiplo que tanto falam na venda de catálogos? A grosso modo, é a quantidade de vezes pelo qual o faturamento do último ano foi multiplicado. Ou seja, se as obras foram vendidas por USD 300 milhões, é preciso dividir esse valor pelo múltiplo, e encontraremos o faturamento do último ano de Bob Dylan = USD 12 milhões por ano.
Isso quer dizer que toda venda de catálogo terá esse múltiplo alto? Certamente não. Depende de diversas variáveis, entre elas a idade das músicas, gênero musical, artistas que gravaram músicas desse catálogo, oportunidades comerciais – como, quão “sincável” é esse catálogo – entre outros.
Segundo as análises realizadas pela Adaggio, catálogos mais antigos com músicas “eternas”, que anualmente rendem bons rendimentos de sincronização e novas regravações, geralmente resultam em uma proposta com múltiplos mais altos. Catálogos com músicas mais recentes, de gêneros do momento, por outro lado, resultam em múltiplos mais baixos devido à performance e ao ciclo de vida da música.
O ciclo de vida das músicas
Como é o ciclo da vida de uma música? Geralmente após o lançamento, a música demora cerca de dois a quatro trimestres para bater seu pico de rendimento. Após isso, a performance naturalmente cai, pois o artista começa a trabalhar em outro lançamento, depois o próximo e assim por diante. Isso resulta na depreciação do rendimento da música de um ano para o outro, até estabilizar seu rendimento em um patamar abaixo, se assemelhando a uma curva de cauda longa.
Mesmo a música recém-lançada se tornando um sucesso atemporal, ela vai ter esse mesmo comportamento de performance. A diferença é que a sua curva de desvalorização será mais suave, e ela estabilizará em um valor mais elevado.
Interesses dos músicos e investidores
Venda de catálogo é um assunto que está em alta agora, mas não é nada novo. Isso já aconteceu de outras formas no passado, quando o rei do pop Michael Jackson comprou uma participação em 251 obras dos Beatles, e também com os famosos “Bowie Bonds” – quando David Bowie levantou fundos e emitiu títulos de dívida prometendo um retorno com a renda gerada pela sua discografia de 25 álbuns.
A venda de catálogo se tornou algo muito atrativo tanto para os músicos quanto os investidores. Para os músicos, é uma oportunidade de antecipar rendimentos que demorariam dezenas de anos para serem recebidos, trazendo uma liquidez imediata para investir em sua carreira ou projetos pessoais. É também uma oportunidade de ter uma empresa dedicada a cuidar de seu repertório, trazendo novas oportunidades comerciais ao trabalhar ativamente as músicas.
Já para os investidores, é um investimento em ativos com receitas previsíveis, que são descorrelacionados com o mercado de ações, onde não importa se a bolsa está em alta ou em baixa, a música continua sendo consumida em todas suas formas e fontes. Para eles, a música é praticamente considerada uma classe de ativos à prova de recessões. Tanto é que durante a queda do mercado nos anos 80 e 90, e também durante a pandemia de COVID-19 em 2020 e 2021, o mercado musical global ainda cresceu vertiginosamente.
Música é um ativo tão valioso quanto petróleo ou ouro e a venda de catálogo é um tipo de negociação que chegou para ficar.
_________________
João Luccas Caracas é músico, produtor musical, compositor e DJ com mais de duas décadas de experiência no mercado musical. Atualmente, é o CEO e fundador da Adaggio, gestora musical e maior fundo de investimentos especializado em royalties musicais da América Latina.
João iniciou sua carreira tocando bateria, seu instrumento principal, em diversas bandas durante a adolescência. Aos 20 anos de idade, estreou sua carreira artística como DJ onde, no decorrer de mais de dez anos, se apresentou em diversos países ao redor do mundo. Durante esse período, lançou e produziu mais de cem faixas que acumularam centenas de milhões de streams nas plataformas digitais, conquistando dois discos de platina. Teve a oportunidade de tocar em alguns dos maiores eventos do Brasil como Rock in Rio, Lollapalooza, Ultra Music Festival, além de renomadas casas noturnas como Green Valley, Laroc, entre muitas outras.
No ápice da pandemia, com a interrupção dos shows e eventos, se especializou no mundo dos direitos autorais. Foi quando fundou a Adaggio, com o propósito de empoderar outros músicos, compositores e artistas, ao negociar seus direitos autorais com o intuito de ressignificar canções e perpetuar legados musicais.
Em 18 meses a Adaggio adquiriu participações em mais de 100 catálogos musicais que totalizam cerca de 120 mil obras e fonogramas, incluindo algumas das músicas de maior relevância cultural da história da música brasileira.