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“Pose”: o “Vogue” para muito além de Madonna + o ballroom brasileiro

O impacto da rainha do pop é inegável, mas precisamos olhar para quem construiu essa cultura.
Foto: reprodução/Instagram @houseofzion// @poseonfx // divulgação.

A cena underground LGBTQIA+ nova-iorquina dos anos 1980 é o foco do majestoso documentário “Paris Is Burning”, lançado em 1991. No verão do ano anterior, Madonna emplacou mais um hit nas rádios norte-americanas. O single “Vogue” foi um dos atos que consagraram a rainha do pop e elevaram o seu status a artista revolucionária, dona de uma expertise poucas vezes encontrada na indústria.

Esses dois acontecimentos, cronologicamente próximos, inspiraram episódios da série do momento: “Pose”. Na virada do ano, a segunda temporada do seriado chegou à Netflix já carregando títulos importantes: o maior elenco trans de uma produção do tipo e um troféu Emmy de melhor ator entregue ao icônico Billy Potter.

Foto: reprodução/ @poseonfx Instagram

Retratando os dilemas, desejos e sofrimentos da comunidade LGBT afro-latina da maior metrópole estadunidense, o roteiro de Ryan Murphy (“Glee”, “American Horror Story”, “Hollywood”) inseriu o lançamento de “Vogue”, de Madonna, como um dos pilares da segunda metade da série, que, ao contrário da primeira, se passa nos anos 1990. A temporada retrata o momento em que a música é lançada, dando uma visibilidade maior à magia que antes ficava escondida nos subúrbios e nos ballrooms.

A tristeza e os efeitos da epidemia do HIV, que levou embora mais de 25 milhões de pessoas desde o início dos anos 1980, dividem espaço com homenagens às precursoras do pop (Diana Ross, Mariah Carey, Whitney Houston, Janet Jakcson e muitas outras), momentos de exaltação a moda e muita cultura.

Confira o trailer:

Madonna e “Vogue”

Abraçando fortes tendências da dance-music, a música, lançada no dia 27 de março de 1990, também carrega sonoridades típicas da disco music mesmo após o ápice do estilo anos anteriores. A faixa teve um desempenho comercial estrondoso, alcançando o número um em mais de 30 países e sendo o single mais vendido daquele ano.

Como mostrado na segunda temporada de “Pose”, a música movimentou a cena LGBTQIA+ da época e levou a cultura e, principalmente, o ‘Voguing’ ao modismo. Na trama, os personagens começam a receber uma atenção midiática inédita e, consequentemente, prosperam em áreas correlatas à música como a moda e a dança. O clipe, dirigido pelo premiado diretor de cinema David Fincher, reproduz os movimentos que inspiraram Madonna alinhados a uma aura fashion preto&branco dos anos 20.

Sem dúvidas, o single da rainha do pop é uma grande contribuição e ato artístico poucas vezes visto depois. Mas muito se questiona nos fóruns e debates sobre música pop e cultura, qual era a proximidade de Madonna com a cultura ballroom e o Voguing.

O professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e membro do Grupo de estudos de Gênero, Cultura e Diversidade – GENUS, Roney Gusmão, explica ao POPline que a cantora realmente frequentou a cena da época e que grande parte de sua inspiração vem da amizade com o dançarino Jose Gutierez Xtravaganza, também um dos consultores da série de Ryan Murphy.

“Father” da tradicional casa Xtravaganza, ele foi crucial para o envolvimento da cantora e, consequentemente, para o desenvolvimento da era “Vogue”. Além de apresentar os movimentos de dança, esteve com ela em sua ambiciosa, icônica e polêmica Blond Ambition Tour.

“Existe, naquele momento, um desejo de Madonna de aproximação daquilo, na função de extrair o que aquilo pode servir para ela. Tanto que, os relatos são de que em 1991, Madonna dá as costas e vai embora, prossegue a carreira dela e não pisa mais lá.”, explica Gusmão.

MADONNA durante sua ‘Blonde Ambition’ tour, em 1990.

O professor, que se diz grande fã da cantora, no papel de pesquisador, admite que Madonna demonstrou ser, ao longo de sua carreira, uma grande empreendedora. Embora, na época, o seu discurso em prol da população LGBTQUIA+ tenha sido realmente efetivo, Madonna certamente usou a cena underground muito mais como inspiração artística e exploração de novos nichos do mercado, do que propriamente para fins filantrópicos ou humanitários

“Não que Madonna tivesse alguma obrigação com isso. Mas é importante mostrar que esses lugares não eram de preocupação humanitária do artista. Eram objetos de exploração para fazer patrimônio. Os fãs não gostam de lembrar que estão diante de uma pessoa jurídica”, conta o professor da UFRB .

Apesar da controvérsia, Gusmão acredita que a apropriação do tema por parte da estrela do pop merece uma ponderação. “A própria visibilidade acaba gerando um dissenso que eu acho muito útil, necessário”.

“Estes corpos afeminados, que contestam as fronteiras de gênero, que contestam aquilo que a ‘famigerada’ [ministra] Damares defende, que contestam essas demarcações artificiais e socialmente construídas…Estes corpos precisam alcançar a visibilidade, precisam anunciar que ser gay, afeminado, não deve ser razão para furtar o seu direito de aparecer como sujeito político”, defende o professor da UFBA.

Questionamentos sobre a apropriação cultural de cantoras pop a parte, é inegável a importância de Madonna para a comunidade LGBTQ+. Em tempos onde poucos ídolos de tamanha projeção ousavam tocar no assunto, a rainha do pop enfrentou lideranças, inseriu pessoas invisibilidades em suas obras e orientou o seu público a respeito de questões ligadas ao HIV/Aids. As questões de apropriação estão quase intrínsecas a cultura pop e é um problema muito mais profundo e complexo, como bem pontuou o especialista e mostrou a série “Pose”.

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O debate sobre apropriação cultural

Fênix Zion, da House of Zion, vive em Alagoas, tem 32 anos, dança e atua na técnica de produção de moda e pioneirismo no ballroom em sua região. Fênix acredita que toda relação do show business com a Ballroom tem aspectos positivos e negativos. Essa relação e popularização da cena ajudam pessoas que dependem disso financeiramente. “A popularização das histórias das balls auxilia quem é profissional das artes, é positivo porque gera renda, onde muites conseguem trabalhar a partir da Ballroom, mas as produções sempre romantizam ou marginalizam e esses fatores produzem no imaginário algo irreal, fantasioso sobre nossa história, ou nutrem estereótipos”, explica Fênix.

Opinião de Fênix Zion sobre “Pose”, série da Netflix:

“Apesar dos pesares, a série ‘Pose’, acredito que para a maioria das pessoas que dão continuidade a cultura das balls é um marco, um elenco formado majoritariamente por atrizes negras trans, quando foi a última que assistimos esse fenômeno? Talvez nunca, vale ressaltar que o roteiro contou com a colaboração de lendas da Ballroom norte-americana, por isso é inspirado em fatos e que o elenco também é conhecido nas balls locais, por isso, o drama foi sentido por quem pertence à comunidade”.

Fênix ressalta que a apropriação cultural é uma das estratégias racistas utilizadas desde a pós-escravização e lembra que, enquanto Madonna fazia sucesso com “Vogue”, outros artistas negros também lançavam músicas com a participação de membros da Ballroom, mas não tinham o mesmo reconhecimento.

“Os olhos racistas da indústria fonográfica até os dias atuais só enxergam brancos, esse motivo já seria suficiente para não prolongarmos esse assunto. Hoje já entendemos que representatividade auxilia na autoestima de pessoas negres e trans. Não enxergo Madonna, por que ela não é parte da comunidade, e eu não me refiro só da Ballroom, estou falando de também a comunidade negra ou de transvestigêneres”.

Malcolm McLaren – Deep In Vogue With. Willie Ninja (1989):

Opinião de Felix Pimenta, um dos precursores do movimento no Brasil, sobre “Pose” e apropriação cultural: 

“A gente não quer só trabalhar quando se tem um trabalho popular. Ser acionado, consultado, entrevistado quando a comunidade está em alta. A gente continua produzindo fora disso. A gente continua existindo fora destes momentos”, contou Felix.

OUÇA:

 

Ballroom no Brasil: para além do que você vê nos clipes

Uma das características mais importantes do movimento ballroom é o seu senso de comunidade, o seu cuidado com o outro e isso vai muito além da dança, da batalha e do que é explorado pelo mainstream. É um movimento sobre saúde, cumplicidade, acolhimento e representatividade. É encoberto e abraçado por gigantesca complexidade e um cuidado primoroso de seus pioneiros, que já viram a cultura sendo colocada de forma errônea na mídia.

É importante lembrar quem faz e constrói esse movimento: pessoas pretas, trans, corpos dissidentes e fora da normatividade, como explicou o Pai do Capítulo Brasil da House of Zion, Pai da Kiki House de Pimentas, dançarino e artista independente, Felix Pimenta Zion.

“Existem vários movimentos na comunidade ballroom. Mais do que um movimento é uma cultura em que existem diversas ramificações e diversas complexidades dentro. Falar sobre essa perspectiva, daqui do Brasil, é falar sobre outro olhar, é falar sobre uma ligação com a comunidade”, explicou o artista, que também é articulador dos agentes de prevenção do programa municipal DST/Aids da cidade de São Paulo.

O movimento articulado e organizado no Brasil existe há quase seis anos (história do movimento no Brasil, por Fênix Zion, abaixo) e, hoje, já conta com representantes em todas as regiões do país, sendo a representatividade regional uma de suas grandes pautas. Os membros da comunidade se articulam para que os ballrooms das regiões norte e nordeste sejam vistos de forma mais igualitária. Fênix Zion também participa do pioneirismo do tema ao levantar esse debate no movimento.

Pimenta avalia que, nesta meia década, o movimento já conta com uma estrutura organizada de eventos e que, agora, enfrenta as dificuldades da pandemia e toma todos os cuidados com a vida de seus integrantes, enquanto organizam balls onlines. No momento, a luta é para que as pessoas que forem a juntando as casas tracem um caminho mais tranquilo do que os seus veteranos traçaram e tenham acesso ao ballroom através de um material informativo que represente o movimento.

“A gente sempre tenta colocar algumas vírgulas, alguns pontos a fim de proteger a comunidade ballroom para que ela continue sendo para quem ela precisa ser, sendo aberta para várias pessoas, mas que, para ela participar, precisa fazer sentido para ela e para as pessoas que já fazem parte da comunidade ballroom”, explicou Felix Pimenta.

Luna Ákira, de 27 anos, ao lado de Pimenta, é pioneira do ballroom no estado de São Paulo. Apesar de reconhecer a juventude da cena brasileira, acredita que o país está avançado em muitas questões. “A ballroom nacional, com certeza, é uma cena muito jovem, tendo com maior parte pessoas negras, latinas LGBT+ de 18 a 24 anos, diferente de outras cenas mundiais. Em algumas discussões sobre gênero, estamos a frente de muitos outros países, e quando vêm pessoas de fora do Brasil, às vezes, não entendem nossa vivência”, explicou.

“Estamos na fase de curar as pessoas que vêm e trazem várias marcas da vida” – Luna Ákira sobre a cena brasileira de ballroom.

Luna Akira Foto: reprodução/arquivo pessoal.

Ákira conheceu o Vogue em 2012, três anos depois de seu primeiro envolvimento com danças urbanas. Hoje, ela revela que tira o seu “ganha-pão” do que a ballroom oferece e de suas vivências por meio dela. Foi neste local onde ela encontrou suporte quando precisava. “Iniciei meu processo de transição dentro da cena ball, onde recebi apoio de muitas pessoas deste movimento, então sou muito grata por ter conhecido (…) Sei lá… hoje, respiro e vivo ballroom.

O artista e pesquisador Diego Carvalho, em sua monografia para o curso de Educação Física, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), revelou que uma das principais diferenças entre a cena nova-iorquina e a brasileira é a forma como as pessoas são atraídas ao movimento. “Nos EUA a cultura e a cena dos bailes tendia a atrair ‘primeiro’, consequentemente inserindo essas pessoas na modalidade de dança, e no Brasil o processo foi o contrário: as pessoas conheceram os movimentos, se aproximavam da modalidade e, através dela, se inseriram na cena dos bailes”, explicou o pesquisador.

OUÇA:

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Fênix Zion, representante da região nordeste do país, nota que a cultura chega embranquecida e cisgênera no país e concorda com Feliz Pimenta de que existe uma boa estrutura para o movimento no Brasil. “Eu vejo que a Ballroom brasileira está cada vez mais estruturada, não somente nas regiões sudeste e centro-oeste, é notório que a cultura chega no país, embranquecida e cisgênera, onde as questões da comunidade gay se tornam um caminho viável na construção da comunidade”, explicou.
“Mas hoje é diferente há uma movimentação negra e de transvestigêneres, com houses afrocentradas e formadas apenas por pessoas trans. Há também uma organização nortista e nordestina da comunidade com a finalidade de compreender e solucionar suas demandas”, finalizou Fênix.

A história do movimento Ballroom no Brasil, por Fênix Zion

Foto: reprodução/ @houseofzion Instagram

“No artigo que escrevi e que está para ser lançado no livro Devires Negros das Dissidências Sexuais e de Gênero, comento que a dança vogue/voguing antecedeu as balls e de maneira inusitada no Brasil. Através de uma análise de vídeos disponíveis na plataforma YouTube, nos anos 90 grupos de danças em Goiânia, formados por homens cisgêneros e heterossexuais, como: Apotheose of Dance, Millenious of Dance, Let’s Dance, Move Your Body e The Angels Night dançavam coreografias onde os movimentos dos braços lembravam vogue old way e vogue new way ao som de música techno e com nítida referência ao “vogue” da cantora Madonna.
A partir dos anos 2000, profissionais da dança de rua (danças urbanas) pertencente ao Hip Hop, principalmente em São Paulo tiveram contato por meio de oficinas com a dança voguing original e com pioneiros e lendas da Ballroom da cena nova iorquina, exemplo: Cesar Valentino. Os movimentos ou as poses características da dança voguing tornou-se uma novidade nas competições de danças urbanas, podendo ser visto também no Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte. Neste último Estado, as dançarinas, Paula Zaidan, Raquel Pereira e Tereza Moreira, integrantes do trio de dança Lipstick, estudavam o voguing desde 2011 e se tornariam, além pioneiras, produtoras da ball com maior repercussão internacional no país (BH Vogue Fever). É importante comentar que o voguing era ensinado nas academias privadas de danças e que muitas pessoas negras só tiveram acesso ao estilo de dança por conta do avanço da tecnologia de informação com as plataformas de vídeos como o YouTube.

“Fênix Zion, 32 anos, graduade em dança, dançarine profissional e técnice em produção de moda. Sou natural de Alagoas, negre, trans não binárie e soropositive”.

Por volta de 2012, a dançarina, coreógrafa e professora de danças urbanas Eduarda Kona fundou a Pionner Kiki House of Hands Up em Brasília/DF, sendo considerada uma das primeiras mothers da Ballroom no Brasil. Em 2015, no Rio de Janeiro, Diego Cazul e Marco Shau, ambos profissionais da dança fundaram suas casas: a Pioneer Kiki House of Cazul e a Pioneer Kiki House of Kinisi, respectivamente. Um pouco diferente do início de 2000, às três primeiras casas eram anteriormente grupos de danças e de estudos sobre a Cultura Ballroom tendo a dança voguing como suporte para os diálogos e as práticas relacionadas a história das balls, apontando questões principalmente sobre a comunidade LGBT e coletividade como meio de acolhimento, pertencimento e segurança.
No Nordeste, precisamente na capital Recife (PE) formou-se o coletivo Recife4Vogue com influência do Vogue Fever em 2016, onde Edson Vogue se torna umas das principais referências articuladoras do vogue em Recife e região e funda a Kiki House of Guerreiras. A partir dessas iniciativas ocorre a estruturação da cena Kiki (cena atual da Comunidade Ballroom, iniciada por volta dos anos 2000 nos EUA, é considerada uma ramificação jovem, formada por jovens negros e trans na cultura das balls, sendo reconhecida como uma resistência radical à homofobia, transfobia e racismo), resultando no surgimento de novas houses e a realização das kiki balls”.

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