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Há 30 anos, Madonna estreava a turnê “Blond Ambition” e redefinia o conceito de espetáculo pop


R-e-v-o-l-u-c-i-o-n-á-r-i-o: que se caracteriza pela inovação, pela originalidade, pela possibilidade de renovar os padrões estabelecidos; ousado. “Blond Ambition”, terceira turnê da Madonna, reúne todos os predicados citados anteriormente, redefiniu o conceito de espetáculo pop e segue como referência para um show contestador e divertido ao mesmo tempo.

Curiosamente, foi numa sexta-feira 13, de abril de 1990, que a turnê fez sua estreia no Japão. De cara, cantora, músicos e dançarinos enfrentaram temporais que quase comprometeram as primeiras apresentações. Mas após as nove primeiras datas, a tour chegou à América do Norte e todo o perfeccionismo atribuído à Madonna foi posto em prática. A crítica especializada reconheceu o esforço e aclamou a turnê como a melhor do ano.

Era apenas o início de uma jornada que ficaria na história. E por isso, o POPline elencou 10 motivos que fazem de “Blond Ambition” o maior show pop de todos os tempos:

Foto: Reprodução de internet

1. Broadway + performance + sexualidade + irreverência = Blond Ambition

Madonna elevou o conceito de show para um espetáculo da Broadway feito para as massas ao roteirizar o setlist em múltiplas seções. Com a ajuda do coreógrafo Vincent Patterson, criou ambientações diferentes para cada bloco com uma inacreditável troca de cenários (não existiam truques de LED nessa época, ok?) O primeiro era inspirado no filme alemão expressionista “Metropolis”, que serviu de inspiração para o clipe de “Express Yourself”, número que abria o show com uma coreografia que incluía voyeurismo, sexo e masturbação simulada.

“Religious” abria o segundo setor com a dicotomia entre o sagrado e o profano. Na sequência, “Dick Tracy” levava o espectador a um cabaré dos anos 40/50 onde Madonna performava como uma diva e punha em evidência sua (tão criticada) potência vocal. Já o setor “Art Déco” abusava da arquitetura europeia dos anos 20/30 transportado para o palco em forma de escadas e prédios. E o bis, mais festivo, traz mais referências cinematográficas no visual e na coreografia (“Keep it Together”, que fecha o show, é inspirado visualmente em “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, e tem um quê de Bob Fosse, que coreografou e dirigiu Liza Minelli em “Cabaré”).

2. Levou a alta costura aos concertos de pop/rock

A escolha do designer francês Jean Paul Gaultier não foi aleatória. Embora ainda não fosse um grande nome da moda, Madonna já tinha em mente o que buscava para a turnê. “Ela me perguntou se eu faria o figurino. Ela sabia o que queria – um terno listrado, o espartilho feminino. Madonna gostava das minhas roupas porque combinam o masculino e o feminino”, disse o estilista em entrevista.

Foto: Reprodução de internet

Se num bloco, Madonna assumia a postura de líder vestida com um terno listrado com furos para que o sutiã ficasse fora deles, por baixo usava o espartilho cônico que valorizava sua feminilidade, no outro era um espartilho verde e branco no estilo burlesco. Mas para além dos figurinos, quem não se lembra do aplique de rabo de cavalo usado nas etapas asiática e norte-americana? Para a etapa europeia, Madonna foi forçada a adotar os cachos curtos porque o aplique quase a deixou “careca”.

3. Aula de marketing: álbum/filme/show

Originalmente planejada como uma turnê de divulgação do álbum “Like a Prayer” (1989), Madonna já tinha engatilhado um patrocínio milionário da Pepsi, que também se animou com a ideia de tê-la em um comercial que lançaria a faixa-título. Mas após o videoclipe de “Like a Prayer” mostrar a cantora dançando dentro de uma igreja, cruzes queimadas evocando o símbolo da seita racista Ku Klux Klan, além do beijo em um santo negro, a Pepsi foi ameaçada de boicote por grupos religiosos e até mesmo o Vaticano.

Apesar do patrocínio ter sido retirado pela Pepsi, a grana já estava no bolso da Madonna e a repercussão mundo afora cobriria qualquer ameaça de prejuízo. Entretanto, nesse meio tempo surgiu o convite para fazer o filme “Dick Tracy” com o ator Warren Beatty. Postergada para 1990, a turnê ganhou seu nome definitivo e casava com a imagem de Madonna no filme, que ganhou um setor dentro do show onde a cantora dançava com um “cover” de Dick Tracy. Soma-se a isso o fato de Madonna e Warren engatarem um namoro durante as filmagens.

Era o combo perfeito: o álbum “I’m Breathless”, que trazia canções inspiradas pelo filme, vendeu razoavelmente bem; o filme foi um sucesso de bilheteria; e a turnê esgotou ingressos por onde passou. Bingo!

4. Como despertar a ira do Vaticano?

Um dos números mais memoráveis da turnê foi a releitura com toques indianos em “Like a Virgin”, que ganhou até mesmo um exótico arranjo de cítara. Na companhia de dois dançarinos com sutiãs extremamente pontudos, Madonna performa em cima de uma cama de veludo vermelho e em determinado momento toca sua parte genital com vontade. Não satisfeita, simula um sexo nada carinhoso no fim da canção. E para apimentar, quando a canção chega ao ápice e para abruptamente, a voz dela ecoa um sonoro “GOD”! É a deixa para o bloco religioso que vem em seguida. Foi o suficiente para que o Papa João Paulo II encampasse um boicote ao público em geral e à comunidade cristã para que não comparecessem à turnê, chamando-a de “um dos shows mais satânicos da história da humanidade”.

Ao chegar ao Aeroporto Internacional de Roma, Madonna deu uma rara (e tumultuada) coletiva de imprensa para defender sua apresentação. “Sou ítalo-americana e tenho orgulho disso… Meu show não prejudica os sentimentos de ninguém. É para mentes abertas e leva a ver a sexualidade de uma maneira diferente e assim como o teatro, meu show faz perguntas, provoca pensamentos e leva você a uma jornada emocional, retratando o bem e o mal, luz e escuridão, alegria e tristeza, redenção e salvação”, disse no encontro com jornalistas.

Ainda que o primeiro show no Stadio Flaminio tenha sido um sucesso, a segunda noite foi cancelada devido à baixa venda de ingressos, assim como uma ameaça de greve geral dos sindicatos. Nesta disputa entre Madonna e o Papa, digamos que deu empate.

5. Quem dita as leis é ela!

A performance de “Like a Virgin” já havia causado controvérsia antes. Durante a passagem da turnê em Toronto, no Canadá, policiais ameaçaram prender Madonna se ela repetisse a simulação de masturbação. Nos bastidores, a cantora se recusava a mudar sua coreografia e dizia que o ex-marido Sean Penn já havia sido preso. Então havia chegado sua vez.

Quem tentou contornar a situação com a polícia linha dura foi o gerente da turnê, que foi taxativo com o responsável por cumprir as ordens dadas por um policial aposentado e detetive com uma “posição forte” contra Madonna e a turnê. “Cancele o show e você terá que dizer a 30 mil pessoas o motivo”.

Ao passar pelos policiais no backstage, cuspiu no chão em sinal de protesto e seguiu sem alterar o show. Madonna abriu o show perguntando ao público se eles acreditavam em liberdade de expressão. O “sim” foi uníssono. A cena de masturbação foi apresentada normalmente e, no fim das contas, a polícia decidiu não prendê-la por gestos obscenos em público.

Até mesmo “na cidade fascista de Toronto”, como ela mesma rotulou, quem dita as leis é ela!

6. Sexo seguro

Toda vez que ia cantar “Into the Groove”, Madonna e suas backing vocals Nikki Harris e Donna DeLoris brincavam com outros três dançarinos que simulavam uma espécie de flerte. Era a deixa para que Madonna alertasse ao público a importância da camisinhas nas relações sexuais. Isso em 1990, quando o mundo estava assustado com o avanço do HIV/Aids.

“Você nunca conhece um cara direito até pedir que ele use camisinha”, dizia antes de começar a performance. Vale ressaltar que Madonna foi a primeira pop star global a falar abertamente sobre sexo seguro em seus shows e até mesmo em seus discos. No encarte de “Like a Prayer” vinham informativos sobre como se proteger.

A última apresentação em Nova Jersey foi dedicado ao artista plástico e amigo de longa data Keith Haring, morto por complicações em decorrência da Aids em fevereiro de 1990. O faturamento de mais de US$ 300 mil foi doado para amfAR (Fundação de Combate e Pesquisa a AIDS). Dezoito anos depois, Madonna usaria grafismos de Keith como backdrop durante a performance de “Into the Groove” da turnê “Sticky & Sweet”, que passou pelo Brasil.

7. Pró-Gay

Pela primeira vez na história dos shows pop, uma artista de primeira grandeza jogava luz sobre seus dançarinos. Cada um deles tinha o seu momento de brilhar durante o espetáculo. Um detalhe poderia passar despercebido se não estivéssemos em 1990: entre os dançarinos, apenas Oliver Crumes era heterossexual, diferente de Luis Camacho, Salim Gauwloos, Jose Gutierez Xtravaganza, Kevin Stea, Gabriel Trupin e Carlton Wiborn, todos homossexuais. Muitos anos antes de ser algo comum entre artistas pop (principalmente), Madonna já defendia abertamente a causa LGBTQI+.

8. Strike a pose!

Tudo o que a série “Pose” mostrou aos mais jovens nos últimos meses, Madonna já havia jogado luz três décadas antes. Sempre atenta ao que estava acontecendo no underground, ela descobriu o voguing através de José Gutiérrez, um dos primeiros bailarinos profissionais a dançá-la, numa ida à discoteca Sound Factory. Lá mesmo o convidou para coreografar o clipe de “Vogue” e, em seguida, embarcar na turnê.

O que antes era uma dança inspirada nos movimentos rítmicos feitos por negros, latinos e/ou homossexuais do Harlem, um dos bairros mais pobres de Nova York, virou uma das coreografias mais memoráveis da história do pop. Sob a batuta de José, toda a turma de dançarinos e backing vocals reproduziu no palco os movimentos que encantaram milhões de fãs mundo afora.

“Vogue” alcançou o 1º lugar nos Estados Unidos e na Inglaterra e se tornou o single mais vendido no mundo naquele ano.

9. O primeiro reality show de uma estrela

Muito antes de existir o “Big Brother” e séries como “The Osbournes”, o primeiro reality show com uma estrela de primeira grandeza ganhou o nome de “Truth or Dare: In Bed with Madonna (Na Cama com Madonna)”. O que era pra ser apenas um especial da HBO com os bastidores da turnê que durou 4 meses, virou uma seleção de cenas de “uma família disfuncional do estilo Fellini”, segundo o diretor Alek Keshishian. Ele foi o responsável por convencê-la a tornar aquele material um filme em preto-e-branco, com números musicais a cores.

Sucesso de público e crítica, o filme revolucionou a indústria da cultura pop e permitiu – pela primeira vez – que os fãs acompanhassem o dia-a-dia de uma estrela. No filme, Madonna foi espontânea, perfeccionista, controversa e imortalizou de vez o status de “rainha do pop”. Quando ainda não existia internet, dar acesso a pedaços de sua vida pessoal e de seus bailarinos rendeu milhões de dólares. E algumas dores de cabeça nos tribunais…

Em 2018, foi nomeado pelo The Guardian como o maior documentário musical de todos os tempos, com o jornalista Ryan Gilbey afirmando que “[Alek] Keshishian não poderia ter treinado suas câmeras em Madonna em um momento melhor”.

10. Legado

Quando foi para a estrada com a “Blond Ambition”, Madonna não apenas mudou a maneira como os artistas performam e se apresentam em estádios e arenas. A turnê revelou as tensões contraditórias subjacentes na cultura americana dominante em relação à sexualidade. Ao elevar a fórmula do show a um nível de teatro e inserir arte e narrativa, ela também queria dar ao público uma experiência, em vez de apenas ir a um show. Aos 31 anos, ela chegava ao ponto mais alto da carreira e tornava-se a força pop mais gloriosamente dinâmica do planeta.

“Pense nos chicotes e correntes de ‘S&M’ de Rihanna, ‘Side to Side’ de Ariana Grande e inúmeros outros grandes nomes do pop que surgiram depois de Madonna, e vestígios de ‘Blond Ambition’ permanecem em todos os seus movimentos. O videoclipe ‘Alejandro’, de Lady Gaga, foi considerado uma “carta de amor visual” para Madonna e a turnê”, escreveu El Hunt à NME.

Alta costura no universo pop pelas mãos de Jean Paul Gaultier (Foto: Reprodução de internet)

A turnê também influenciou o mundo da moda. Em seu livro “Fashion Details: 1,000 Ideas from Neckline to Waistline, Pockets to Pleats”, San Martin chamou o espartilho cônico Gaultier “um símbolo emblemático da moda no início dos anos 90”. Para Harold Koda, da Billboard, o uso do espartilho pela cantora, uma roupa de baixo, como roupa de baixo sugeria que “um controle explícito da imagem de alguém pode transformar, ou pelo menos desestabilizar, as relações patriarcais entre homens voyeuristas e mulheres sexualmente objetificadas”.

Existem diversas gravações completas de shows da “Blond Ambition” no YouTube (apresentações em Yokohama, Dallas, Nova Jersey, Barcelona e Nice são bons exemplos). Certamente este é o show de cabeceira de estrelas como Beyoncé, Lady Gaga, Katy Perry ou Ariana Grande. Tudo, absolutamente tudo, que você vê nos espetáculos de suas divas teve um “marco zero” pelas mãos de Madonna.

Vida longa à primeira e única Rainha do Pop!