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Opinião: Sobre as premiações, ritmos urbanos e acessos

Veigh, Melly e Vulgo FK. Foto: Divulgação

O final do ano e suas diversas premiações me motivaram a escrever sobre algo que há tempos reflito a respeito. Sempre existe o questionamento do público – e, algumas vezes, do próprio mercado – se esses prêmios efetivamente são “justos”, se conseguem contemplar o mundo da música na sua diversidade e eu acho que estamos caminhando, porém longe do ideal.

Depois que a Melly ganhou na categoria de Artista Revelação do Prêmio Multishow, o Twitter parecia o Kanye West quando a Taylor Swift ganhou da Beyoncé no VMA 2009. Talvez nem Melly, nem Veigh e nem o público mais novo vão entender essa referência porque ambos os artistas e quem os escuta tem um pouco mais do que 20 anos, mas o mercado musical vai compreender o que estou dizendo.

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Acho que a reação imediata de profissionais da indústria como eu, que inclusive faço parte da academia do Prêmio, era defender a Melly dos ataques sofridos – sim, não eram opiniões respeitosas e criticas construtivas, infelizmentee destacar o quão merecedora desse prêmio era essa pequena notável baiana. Assim como Beyoncé em 2009, Veigh também deu uma resposta à altura, acabou de uma vez por todas com a possibilidade de rivalidade que terceiros criaram entre eles e enalteceu Melly como ganhadora em um post em suas redes sociais.

Porém, a crítica do público e de artistas como Nina do Porte me lembrou de duas reflexões que eu mesmo já tinha feito:

  1. Será que o mercado está prestando atenção no que essa nova geração do funk e do rap, especialmente de SP, está fazendo?
  2. Quem realmente tem os acessos na indústria e como isso impacta os artistas, a mídia, os festivais e as premiações?

Parece doideira, mas vou explicar meus pontos

Nomes como Veigh, Kayblack, MC PH, TZ da Coronel, Vulgo FK, MC IG, Hariel, Major RD, entre outros, podem soar estranhos ou não tão relevantes para grande parte dos profissionais da indústria mais tradicional da música, mas são extremamente populares entre os jovens, pessoas negras e periféricas do nosso país.

Talvez você seja da indústria e saiba o que é Warner, Universal, Sony ou Som Livre e não saiba o que é GR6, Mainstreet ou Rock Danger, mas pode ter certeza que esses jovens acima que eu citei sabem. 

Por conta dos números e impacto que esses novos artistas estão causando no público, aos poucos, a mídia e o mercado estão sendo quase que “forçados” a saber quem eles são/o que estão fazendo. Estamos falando de artistas que vivem no Top 50 das plataformas digitais e que, diferente de artistas do pop, investem muito menos dinheiro em marketing (clipe, anúncios, etc) porque o alcance orgânico deles é assustador.



Na retrospectiva do Spotify de 2023, por exemplo, Veigh teve mais de 1 bilhão de plays e 2 dos 5 álbuns mais escutados no Brasil (os outros 3 eram de sertanejo) e MC Ryan foi um dos 5 artistas mais ouvidos do ano, acompanhado por mais 4 nomes do sertanejo também. MC IG, Vulgo FK, Don Juan e outros nomes vem se destacando e alcançando patamares que dificilmente outros gêneros estão conseguindo alcançar.

Também acredito que os prêmios não devem ser pautados apenas em números, mas a questão é mais profunda. A mudança no perfil dos membros da Academia do Prêmio Multishow nos últimos 2 anos, por exemplo, possibilitou que artistas como Tasha & Tracie, BK, Veigh, Vulgo FK, Kevin O Chris e Kayblack começassem a aparecer mais na premiação. Mas para que esses efetivamente ganhem prêmios que estejam para além das categorias de seus respectivos estilos (como Funk do Ano, Hip Hop do Ano e etc), existe uma barreira: a própria indústria!

Prêmio Multishow 2023 amplia atuação da Academia e reconhece mais artistas e gêneros musicais

Assim como foi com o funk no início dos anos 2000, muitos dos profissionais que ocupam cadeiras como a minha no mercado ainda não consideram essa fase do rap e do funk musicalmente relevante ou de complexidade musical “apurada”. Os beats, autotunes e conteúdo das letras ainda “não caíram no gosto” dos críticos que estão a mais tempo no ramo da música.

Vale lembrar que, até muito pouco tempo, o funk de Tati Quebra Barraco e até o rap dos Racionais MC’s nem eram considerados como cultura por uma parte da população (ainda hoje, muitos não consideram)… De alguma forma, todo grande movimento artístico e cultural advindo da periferia – onde majoritariamente a população é negra – leva um tempo considerável para ser aceito, enaltecido e reconhecido no nosso mercado, mesmo gerando lucro e impactando uma grande parte da população. A Furacão 2000 que o diga, (risos).

Desde a época do extinto VMB, é histórica a briga de representantes do rap e outros ritmos urbanos com essas premiações por quase nunca serem contemplados ou vencerem. Por conta disso, surgiram prêmios como Rap Nacional, Rap Brasil (com apenas uma única edição) e Sobre O Funk. E essa briga tem fundamento: se a indústria musical, ainda é majoritariamente composta por pessoas brancas, do sexo masculino, de classe média e 35+, como que as premiações vão refletir a realidade da música brasileira atual? Lembrando que as academias de prêmios mais tradicionais acabam sendo apenas um recorte da nossa indústria.

Ampliando um pouco mais, essa discussão também é feita lá fora em relação a premiações como o Grammy. Na edição de 2017, a própria Adele disse, em um dos seus discursos, que seu álbum não merecia ganhar a categoria de Álbum do Ano e sim Lemonade de Beyoncé com seu visual film que revolucionou o mercado naquele ano. Na mesma edição, Adele ganhou não só Álbum do Ano concorrendo com Beyoncé, mas também Gravação e Canção do Ano, enquanto Bey ficou apenas com Melhor Álbum Urbano Contemporâneo.



Vale também lembrar quando, no Grammy de 2014, o Macklemore & Ryan Lewis ganharam como Artista Revelação concorrendo com Kendrick Lamar e o Drake foi para as redes dizer que o Kendrick havia sido roubado. O não reconhecimento desses movimentos de rap/hip hop/funk em premiações é recorrente e talvez seja o motivo de medalhões como Emicida, Mano Brown e outros não abraçarem ou dificilmente comparecerem nesses eventos.

“Mas Ana, a Melly é uma cantora negra, não-sudestina, de 22 anos, independente e ganhou o prêmio de Artista Revelação… Isso não é bom? Não significa que o mercado está mudando?” E eu respondo: ISSO É ÓTIMO! O mercado está mudando sim. Nos últimos anos tivemos mulheres brancas do sertanejo e do pop ganhando essa categoria e o mercado reconhecer a Melly como revelação já é um grande avanço.

Ao mesmo tempo, acredito que existe sim uma facilidade maior no reconhecimento de artistas que seguem um caminho musical com ritmos e linguagens que se aproximem da parte mais tradicional da nossa indústria, que apresentam o que os críticos chamam de “requinte musical”.

Nessa conjuntura, a probabilidade de uma artista como a Melly e Iza serem reconhecidas em premiações é muito maior do que a MC Carol (caso ela tivesse concorrendo sozinha) mesmo com muito mais tempo de carreira, pois ela canta funk, tem palavrões e versa explicitamente sobre sexo em suas composições, ou seja, apresenta um conteúdo considerado não tão abrangente, que são tabus.

No Prêmio Multishow 2023, a própria Ludmilla ganhou apenas categorias de votação popular. Foi necessário, literalmente, um boicote da própria e de outros artistas em relação ao Prêmio para que o mesmo fosse reformulado como um todo, inclusive quem escolhe os indicados, quais são as categorias e como os vencedores são selecionados.

Ludmilla. (Foto: Daniel Pinheiro/BrazilNews)

Essas mudanças tornaram o prêmio melhor e já são enaltecidas por muitos – como eu – mas ainda não são suficientes para que alguns artistas se sobressaiam em relação a outros porque isso requer uma mudança de pensamento social que ainda vai levar tempo para acontecer.

Mas lá atrás eu também falei de outro ponto: os ACESSOS!

Desde que comecei a trabalhar com música, entendi que conhecer as pessoas certas é tão importante quanto produzir boa música ou ter dinheiro para investir. Você estar associado a um artista relevante, uma gravadora ou ter um empresário/equipe com relações com veículos de imprensa, festivais, entre outros, pesa muito.

Apesar de virem do independente e mesmo alguns deles já em grandes gravadoras, percebi que os nomes do funk/trap de SP quase não configuram nos line-ups dos grandes festivais ou nos mais “hypes”, a menos que fossem festivais específicos desses estilos. Creio que o Rock In Rio inaugurou a entrada de artistas como o MC Hariel participando do show do Papatinho em 2022 no Sunset, o The Town trouxe Veigh, Kayblack e outros no line deste ano mas em um palco menor e dizem que esses shows ficaram mais lotados que os outros palcos principais.

Seguindo a linha, o Lolla também traz artistas novos de Funk e Rap no line de 2024, mas muitos deles estão fazendo shows casados (dois artistas dividindo os 60 min de show). Será que esse movimento vai abrir caminho para a entrada de mais artistas da cena em outros festivais?

Querendo ou não, estar nos lines de eventos como esses dependem muito do relacionamento com o mercado mais tradicional da música. Penso que esses artistas já citados, apesar de possuírem recursos financeiros, muitas vezes não têm os “acessos” ou estão começando a ter no caso daqueles que estão agora em grandes gravadoras. Para ter os acessos, você precisa cair nas graças do mercado em determinado momento ou ter o famoso QI: quem indica.

MC Hariel, MC Ryan SP e MC Cabelinho no The Town em 2023. (Foto: BrazilNews)

Nomes como Kevin O Chris, MC Carol, BK, Melly, Luedji Luna, Baco são exemplos daqueles que, mesmo não tendo “grandes gravadoras” por trás de seus trabalhos, possuem um time no backstage com amplas relações no mercado e isso, em algumas esferas, facilita muito os acessos.

Consequentemente, essas relações fazem com que eles sejam vistos por uma outra ótica, configurem com mais frequência nos line-ups de grandes festivais, sejam convidados para certos eventos e tenham mais inserções na mídia tradicional se comparados com outros nomes como MC IG e Vulgo FK que têm números impactantes e estão em grandes gravadoras.

Que fique escurecido que a questão aqui não é sobre quem merece mais… Esta é apenas uma reflexão para tentar acender uma luzinha na cabeça dos meus colegas de mercado: será que estamos olhando os ritmos urbanos com a atenção que eles merecem? E será que estamos reconhecendo a sua importância na indústria musical hoje?

E para o grande público, essa é uma tentativa de explicar que não é uma questão de “marmelada ou injustiça” quando seu artista não ganha um prêmio… Além do Brasil ser um país com muitos talentos quando falamos de música, existem influências culturais e sociais que determinam muitas situações no nosso mercado (e na nossa vida), inclusive quem tem mais chances de ganhar em uma premiação musical!

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A arte sempre esteve no caminho da mineira Ana Paula Paulino. Dançarina desde os 3 anos, a atual empresária e produtora se envolveu com o meio cultural de Belo Horizonte bem cedo, mas foi apenas após sua ida definitiva para o Rio de Janeiro em 2014, que ela descobriu sua verdadeira vocação para o gerenciamento artístico e planejamento de carreira musical.
Bacharel em Relações Públicas pela UFMG e indicada à categoria “Profissional do Ano” do WME Awards 2022, Ana Paula é uma das sócias da Ubuntu Produções, juntamente com a irmã Isaura Paulino. Além disso, Ana Paula também é Gerente de A&R na Warner Music Brasil.
Criada em 2015, a Ubuntu objetiva ser força motriz, alavancando iniciativas, carreiras, talentos e gerindo sonhos, além de pensar estrategicamente em projetos e ações que agregam valor e possibilitam a visibilidade de segmentos, pessoas e anseios, que merecem mais palco.
Além das áreas de produção e gestão cultural, planejamento e gestão de carreiras artísticas, a Ubuntu Produções é também uma editora/ gravadora, responsável pelos lançamentos e gerenciamento das produções musicais e audiovisuais de seus próprios artistas.
Além de desenvolver grande parte das estratégias relacionadas aos artistas ligados à empresa – como a funkeira @mccarol -, Ana Paula Paulino também atua como curadora, tendo participado de projetos como Red Bull Music Pulso; os festivais Rider #DáPraFrazer, Conexidade, entre outros; além de ter integrado a curadoria do Edital Natura Musical 2021. Já atuou na direção e/ou concepção de clipes de artistas como Heavy Baile, MC Carol e Abronca.
É também ativista, palestrante e foi speaker do TEDx São Paulo, sob o tema #ideiassnegrasimportam, em novembro de 2020.

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