A denúncia de trabalho análogo à escravidão em mais uma edição do Lollapalooza e as opiniões sobre o assunto me fizeram refletir muito sobre a realidade de quem trabalha no ramo artístico e de entretenimento no nosso país. Assim que saiu a notícia, observei dois tipos de reação: a do grande público e a dos profissionais envolvidos no show business.
Pela internet, foi possível constatar a indignação coletiva por parte da sociedade. Talvez porque, a notícia do Lolla tenha vindo no vácuo de outro caso de grande impacto, que expôs, recentemente, famosas vinícolas do Sul do país. Foram muitos os tweets e posts nas redes sociais condenando a precariedade que parece tão absurda, principalmente, quando o cenário da discussão é um festival de cifras milionárias. Um dos posts, inclusive, estabeleceu um paralelo entre edições anteriores, citando matérias que mostravam que o trabalho análogo à escravidão “fez parte do line up” de 2018, 2019, 2022 e agora, 2023.
Junto às críticas, um movimento de boicote ao Lollapalooza começou a tomar forma. Não apenas para que o público desistisse de comparecer ao festival, mas houve também pressão para que artistas e influenciadores aderissem ao boicote. Foi aí que meu conflito interno começou: para quem não sabe, a empresa da qual eu sou sócia trabalha com artistas negros e periféricos e uma de nossas artistas havia sido contratada por uma marca patrocinadora do festival como influenciadora.
Ao mesmo tempo em que eu concordava com a indignação popular por conta do caso e não compactuava com o ocorrido, eu também não achava justo a cobrança de que nossa artista ou tantas outras pessoas negras tivessem que aderir ao boicote para fazer valer seu posicionamento. Além de estarem expostos às multas contratuais, são esses cachês que sustentam equipes inteiras, pessoas também pretas e periféricas, e fazem com que nosso trabalho seja possível. Sejamos realistas: o festival não iria deixar de acontecer, outros indivíduos realizariam o mesmo trabalho e, no final, os maiores prejudicados seríamos nós mesmos porque todo o resto sairia ileso.
A menos que exista uma cobrança efetiva das marcas patrocinadoras e um movimento organizado em que não só o público e artistas pretos, mas todos os envolvidos — principalmente aqueles que se identificam como antirracistas, aliados e socialmente responsáveis — se organizem e demonstrem a sua indignação coletivamente, situações como essas continuarão acontecendo no Lolla ou em qualquer outro grande festival que estamos acostumados a frequentar. É necessário que, para além do discurso de inclusão, responsabilidade social e sustentabilidade, os festivais e marcas demonstrem em ações o que está sempre sendo divulgado (e comercializado) enquanto conceito.
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Enquanto o grande público se mostrava assustado com mais uma denúncia, empresários artísticos, produtores e responsáveis por festivais independentes, ao meu ver — e sendo bem sincera — não pareciam surpresos com a notícia de mais um caso de escravidão moderna. Infelizmente, para quem é do nosso meio, essa realidade já é bem conhecida e atravessa grande parte dos eventos no nosso país. Consigo quase afirmar que situação similar possa também ter rolado nos camarote da Sapucaí, no carnaval de Salvador ou no réveillon de Copacabana.
A precarização do trabalho na área da arte e entretenimento é algo muito comum. Até mesmo em eventos organizados pelo poder público. Quanto você acha que ganham aquelas pessoas que ficam fazendo corda humana nos megablocos de carnaval? Quais são as condições de trabalho de quem monta e desmonta uma estrutura de mega show ou trabalha por horas no bar de um festival? E mais: muitos dos cachês de shows — com exceção ao do Drake (risos) e outros poucos artistas — mal cobrem a infraestrutura, remuneração de ensaios, figurinos e outros itens para o mesmo, então muitas vezes os artistas e suas equipes literalmente pagam para trabalhar.
Se a gente parar para pensar, apesar de movimentar milhões na economia, pouco se fala em piso salarial ou regulamentação de serviços relacionados à área de entretenimento. Aliado a isso, ainda são poucas as políticas públicas e investimentos no setor. Então dá pra entender que essa conta não fecha?
O Lolla atribuiu o trabalho escravo a uma empresa terceirizada, mas isso isenta eles de qualquer responsabilidade? Creio que não. Já a T4F, responsável pelo festival até este ano, declara que rompeu contrato de terceirização com a Yellow Stripe, que opera os bares, e que se certificou de que todos os direitos dos trabalhadores sejam garantidos. Neste caso específico — e de outros festivais com orçamentos, patrocínios e lucros astronômicos — existe a possibilidade real de evitar esse tipo de condição de trabalho. Mas o que a fiscalização encontrou lá, tristemente, é só uma amostra da nossa indústria.
A pandemia serviu como uma lupa para escancarar que a área da cultura, eventos e entretenimento é a última a ser vista pelo poder público. Fomos os primeiros a parar e os últimos a voltar e, dentro das nossas casas, era a arte com as lives que nos divertiam, nos mantinham vivos. Mas quem mantém vivos aqueles que vivem da arte?
Com a volta do Ministério da Cultura, a gente espera que aumente a ocorrência de políticas públicas e investimentos para nossa área. Mas vocês entendem que o que foi retratado no Lolla é sistemático? Que se algo não for feito de maneira geral, na próxima visita que o Ministério do Trabalho fizer a esse ou em qualquer outro festival, eles provavelmente irão encontrar situações semelhantes?
Como combater essa triste realidade? Uma amiga responsável por um festival, por exemplo, me contou que ela implementou um programa para se discutir e monitorar bem viver, segurança e boas práticas juntos aos fornecedores do evento. Isso pode ajudar muito, mas ela também relata que os próprios fornecedores costumam fugir da conversa.
Por isso é necessário o envolvimento de todas as partes: do poder público para que exista a regulamentação deste tipo de serviço, com leis e regras sobre carga horária, piso salarial e etc; de investimento público e privado para que as iniciativas culturais ocorram com orçamentos dignos e com uma remuneração justa dos envolvidos; dos gestores e responsáveis por festivais, para que os mesmos cobrem seus fornecedores e confiram se não há indivíduos sendo explorados ao longo do processo; e do público para cobrar dos eventos e das marcas uma entrega socialmente responsável.
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