É sabido que sempre se tentou colocar goela abaixo dos artistas a secreta e poderosa “fórmula” comercial que prometia garantir o sucesso. Fazer uma música sem uma longa introdução, músicas com menos de 3 minutos, corte da rádio, jabá, cada época contou com o seu “macete”. Mas parece que chegamos em um momento onde os padrões de sucesso, e o que se faz para estar dentro destes, passou de todo e qualquer limite. É o que diz a artista Manu Gavassi, em um vídeo que viralizou na semana passada.
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Manu talvez tenha minimizado as portas que lhe foram abertas pelo fato de ser filha de um radialista. Talvez, tenha também diminuído as demandas dos movimentos identitários contra apropriação cultural às simples caixas onde se colocam os artistas e “limitam” suas criações. Mas, este não é o foco desta reflexão. Meu holofote é no manifesto de uma artista que clama para que a arte esteja novamente no centro do mercado fonográfico.
Enfrentamos neste momento um grande desafio: como tornar viável e usufruir das diferentes pontes que podem existir entre um artista e seu público.
A faixa etária mais jovem troca shows ao vivo pela experiência online sem pestanejar. E ainda não estamos nem perto do acesso em massa às vantagens que a IA pode trazer para nossas vidas.
Uma campanha de marketing digital média para um lançamento que antes custava USD 10 mil, hoje custa o triplo, mesmo para artistas que não ganham isso em um ano com os plays de suas músicas.
O que mais ganhou destaque na imprensa no festival The Town foram os investimentos (ou prejuízos) que alguns artistas fizeram em suas apresentações. Por outro lado, enquanto donos de festivais fora do eixo Rio-SP estão descrentes dos valores de cachês que chegam em seus e-mails, artistas recebem propostas que não cobrem nem as aéreas de suas equipe, provando que existe uma desconexão entre o artístico e a realidade do mercado.
Está cada vez mais difícil ter em mãos um release e fotos dos artistas no momento dos lançamentos (o básico do básico). Contudo, nunca falta conteúdo em suas redes, muitas vezes alheios à estratégia vigente, em sua maioria focados em publicidade.
E é claro: a arte salva, mas os artistas e suas equipes precisam também sobreviver. Com os milhões de plays pagando pouco, com os preços exorbitantes das passagens aéreas impossibilitando o lucro em muitos shows, alguma outra coisa precisa ser feita.
E parece que, ao invés de coletivamente questionarmos a realidade que se instaura e o futuro para onde o mercado fonográfico aponta, estamos apelando para todos os lados, com um único objetivo: “trendar”, custe o que custar. E aqui não falo só de artistas.
Esta conta está chegando feito tsunami. Quando olho para o lado, vejo muitos artistas com depressão, crise de pânico e ainda assim se sentindo obrigados a criar mais e mais tudo, menos música. Empresários desesperados atrás de dinheiro, sem colocar na balança o quanto este aporte realmente custa. Agregadoras e gravadoras saturadas com o ritmo com o qual tudo está acontecendo.
Perdemos nos últimos anos muitos espaços dedicados à música na TV, rádios e cadernos de cultura dos jornais impressos. Estamos neste momento perdendo também espaços em algumas plataformas digitais, que têm investido mais em desenvolver ferramentas de “comunidade” do que em fomentar a “música pela música”.
Por princípio, a arte deveria bastar por si só. Mas agora é default que artistas sejam além de artistas, influenciadores. Ou que sejam um portal vivo de revistas de celebridades, onde em meio a polêmicas pessoais, haja um pequeno espaço para lançar uma música e contar com a audiência de quem se deleita no prazer de saber da vida alheia.
Uma expressão usada hoje em dia é “aquecer os algoritmos”, e muitas vezes é sugerido que o artista lance um single antes do lançamento para tal aquecimento. Em que momento passamos a utilizar uma obra de arte como um petisco?
Tá cruel e todos nós sabemos. E é responsabilidade de todos nós frear essa máquina, que muitas vezes esmaga e tritura.
No mesmo dia que vi o vídeo da Manu, que me causou grande incômodo, estive em um evento ao lado de uma artista que também é uma grande amiga pessoal, e que estava vivendo um momento ruim na sua vida. Mesmo sabendo que ela já tinha feito um esforço enorme pra estar ali, porque “tinha que estar”, eu ainda a repreendi por não ter feito fotos boas para as suas redes sociais.
Hoje, pensando nisso, enquanto escrevo estas palavras, me sinto mal. Se esta cobrança virou uma coisa automática com uma pessoa que amo, por onde começo a buscar um pouco mais de humanidade nas minhas relações profissionais?
No mesmo festival The Town acima citado, tive a oportunidade de ver o impressionante show de Gloria Groove, que apostou em uma experiência imersiva através de cenários e efeitos especiais, além da potência que ela por si só já carrega. E horas depois assisti ao show de Bruno Mars, que ao contrário de Gloria, manteve 100% do foco na sinergia dele com sua banda.
Eles estavam ali, tirando e curtindo um som absurdamente bom. A impressão era de que eles estavam tão descontraídos e divertindo-se, quanto o público. Este show fez com que eu me perdesse de mim mesma, em uma viagem quase lisérgica no puro som. Diferente (e não necessariamente melhor) da Gloria, show para viver de olhos fechados. E pensar na profissão-música desta forma, precisa voltar a ser possível, não só pro Bruno.
Manu jogou o bode no meio da sala, e me causou enjoo ver o nosso silêncio frente a isto. Todos nós temos responsabilidade em trazer mais sanidade a este mercado. Todos nós precisamos criar espaço para múltiplas referências. Nós agregadoras, nós gravadoras, nós editoras, nós redes sociais, nós plataformas digitais, nós festivais, nós casas de show, nós empresárias, nós radialistas, nós jornalistas, nós equipes técnicas, nós artistas. De Gloria Groove a Bruno Mars. De Ludmilla a Tim Bernardes. De Ivete Sangalo a Ana Frango Elétrico.
O momento pede por estratégia, por disrupção, mas mais do que tudo: por coletividade. Isto já é uma demanda instaurada, e precisamos atender a ela. Não podemos ignorar por nem mais um dia a epidemia de depressão que assola o mercado da música.
Podemos perceber a diferença que podemos fazer quando todos nós abraçamos um propósito, quando vemos os resultados de projetos como Black Voices (YouTube), Glow e Equal (Spotify), ASA (Oi Futuro), Faixa das Dez (Nova BR FM), e mesmo quando notamos que o mercado está se movimentando para efetivar cada vez mais contratações plurais em cargos de poder. Mudanças impostas, que muitas vezes acontecem por mil motivos, que não a consciência social? Muito provavelmente. Mas que certamente nos levarão a lugares mais positivos.
E aí, quando começamos?
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