O ano era 2000, Ana Garcia estava de volta ao Brasil, depois de uma temporada nos Estados Unidos. Da viagem, ela trouxe uns discos diferentes que não tinham no país. O retorno à capital pernambucana veio junto com o ingresso à faculdade de Jornalismo e foi lá que ela conheceu uns amigos de classe, que tinham um programa de rádio chamado Coquetel Molotov.
“Eu tinha chegado recentemente dos EUA e sempre ia pra faculdade com um disco diferente que não tinha no Brasil. Então, eles me convidaram para participar do projeto por causa dos meus discos. Quando os meus pais receberam o convite de ir morar em Campinas, São Paulo, em 2002, para assumir a Orquestra Sinfônica de Campinas, comecei a pensar em formas de conseguir contribuir com o programa de rádio mesmo a distância.”
A distância mudou os caminhos de Ana Garcia. A partir disso, o site do programa de rádio foi criado e, depois, começou a ser elaborado o primeiro projeto para captar recursos para um festival de música. Para isso, ela recebeu uma ajuda especial: da sua mãe.
“Eu já tinha visto os meus pais realizarem festivais e eventos por tantos anos que pedi ajuda a minha mãe para formatar um nosso. A primeira edição do festival No Ar Coquetel Molotov aconteceu em 2004, no Teatro da Universidade Federal de Pernambuco, um espaço já bem familiar para mim, já que cresci no teatro e nos camarins dos teatros do Recife.”
Embora Ana estivesse começando a trilhar seus passos no mercado da música em um ambiente familiar, na época, ela ainda não entendia que iria trabalhar com isso nos próximos 20 anos. Em entrevista exclusiva para o POPline.Biz É Mundo da Música, Ana Garcia conta sobre a volta do No Ar Coquetel Molotov ao lugar de partida, os desafios de empreender no setor, curadoria e sobre a cena artística no Recife.
“A música sempre fez parte da minha vida e por achar que não tinha talento para tocar, como os meus irmãos que são músicos profissionais, eu me encontrei por trás das produções.”
Leia Mais:
- Entrevista: ‘Estar atrás dos palcos era mais prazeroso do que estar na frente’, diz Carol Jafet
- Entrevista: “Minha música estava no top 10 das rádios e eu não via o lucro”, revela Wallace Vianna
- Entrevista: “Compartilhar conhecimento foi o que me curou”, conta Clemente Magalhães
O Coquetel Molotov no ar
Embora as pessoas achem que Ana Garcia fazia parte da formação original do Coquetel Molotov, a empresária foi uma das últimas a entrar. No começo, eram cinco pessoas e, conforme os anos foram passando, cada um foi seguindo o seu caminho. Ou quase isso, afinal, Jarmeson ainda trabalha com ela.
“Eu sempre vi o Coquetel Molotov como uma banda… Você vai entendendo se tem afinidade para isso com o tempo. A primeira edição, que aconteceu em 2004, foi em um ano muito especial. Tinha rolado o primeiro Sonar em SP, no começo do ano. A gente conseguiu fechar o Teenage Fanclub para o festival com a grana que a gente conseguiu levantar das outras datas da turnê — passando pelo Curitiba Rock Festival, que teve o Pixies, e as diversas noites no SESC SP. Foi uma edição bem DIY (faça você mesmo) sem incentivo e sem experiência alguma. Acho que o nosso maior desafio é o mesmo até hoje: dinheiro.”
O maior desafio do festival é o dinheiro. Ana atribui isso ao fato de Pernambuco ser, segundo ela, um dos poucos estados sem Mecenato e, também, pela maior parte da verba de marketing ficar entre o eixo Rio – SP.
“Eu sempre fico muito agradecida e orgulhosa de poder ter realizado tantas edições consecutivas, mesmo durante a pandemia. Mas produzir um festival de fomento no Nordeste não é fácil!”
Na primeira edição, Ana recorda que chorou no camarim do Teenage Fanclub, por conta do nervosismo.
“Lembro que a galera que contratei para fazer o camarim fez tudo errado. O roadie pegou uma guitarra e começou a cantar para mim. Foi tão especial aquele momento… Ele me viu, a produtora que estava organizando a turnê deles pela primeira vez no Brasil, chorando com medo. Limpei o rosto e segui… Lembro também de ter tido muito apoio da minha mãe e das minhas amigas que chegaram do nada perguntando como poderiam ajudar. Elas trabalham comigo até hoje!”
Além dos shows, o No Ar Coquetel Molotov conta com uma vasta programação com rodas de conversas, pitching, oficinas e palestras. Segundo Ana, a ideia de implementar uma vertente de negócios no festival surgiu depois de participar de conferências e sentir a necessidade de trazer para o Recife, de forma gratuita, um pouco do conhecimento que ela estava vivenciando em outros lugares.
“Eu estava sentindo falta de ter um público diferente nas que já rolavam na cidade pela falta de grana que os músicos e produtores tinham. Acho que hoje em dia a gente se complementa e faz sentido ter as duas coisas. Eu tento focar muito na inovação e trazer pessoas de outros nichos para a gente aprender e se inspirar com elas”, diz Ana Garcia. “O melhor de tudo é poder convidar outros festivais e compradores para participar do Negócios e ficar para o festival. Temos tido pouca oportunidade disso por causa da falta de incentivo, então temos que aproveitar essas oportunidades que são raras”, destaca.
No Ar Coquetel Molotov: O fim é o começo
O fim de uma edição é o ponto de partida para a elaboração da programação do ano seguinte. Ana Garcia revela que a ‘mão na massa’ vem depois de alguns meses, no entanto, as ideias já estão no ar.
Primeiro, a empresária apresenta o evento para as marcas para captar e entender a verba para a próxima edição. Mas, na maioria das vezes, ela faz a programação sem ter uma ideia palpável dos recursos que poderão ser angariados, contando apenas com uma projeção.
“A programação é quase um quebra cabeça, fico analisando quem está com lançamento, quem podemos fechar com exclusividade até o festival e quem o público quer assistir. Para a parte de Negócios este ano convidei a produtora Lenne Ferreira e o produtor Maurício Spinelli para montarem a programação comigo e trazer olhares diferentes do mercado da música. Acho que a ideia é pensar também no que a cidade está precisando, o que podemos trazer de mais novo e rico pros músicos e produtores daqui.”
No Ar Coquetel Molotov: O fomento da cena independente
Um dos principais focos do Coquetel Molotov é o fomento da cena independente com foco em novos artistas.
“Se os artistas das nossas cidades não se enxergarem nos nossos palcos, não tiverem esse desejo de tocar no nosso festival, acho que perde todo sentido do nosso trabalho. Então, sempre tentamos manter isso em mente na hora de fechar a programação”, aponta Ana Garcia.
Ana ainda destaca que nesta edição Libra fez a curadoria do palco Kamikaze, espaço voltado para a música eletrônica, que promete promover encontros únicos. Além disso, a empresária convidou Benke Ferraz, do Boogarins, assinar a direção artística do Palco Som na Rural, trazendo artistas pernambucanos e do Nordeste para a programação.
A volta do No Ar Coquetel Molotov para o ponto de partida: a UFPE
“Estamos felizes e animados em voltar para a nossa primeira casa! Tem sido uma grande experiência poder explorar lugares inusitados da cidade. A gente sempre procura ambientes que eu e o nosso público em outra ocasião provavelmente não iria. 90% do nosso público nunca tinha entrado no Caxangá Golf Club, por exemplo, que chegou a hospedar 3 edições do festival. Acho que o Campus da UFPE carrega uma história linda e vamos poder ocupar de uma forma totalmente diferente.”
A ocupação será na Concha Acústica que, segundo Ana Garcia, está reformada e terá uma vasta área aberta. Nos palcos, subirão artistas como Flora Matos e Don L, atrações que foram pedidas pelo público e fechadas no começo deste ano.
Além disso, a empresária conta que negociou com artistas de outros festivais, como a Arca. No entanto, a desvalorização da moeda brasileira comprometeu a contratação de atrações com altos cachês.
“Eu vejo muito o nosso público pedindo uma artista x ou y e mal sabem que o cachê custa 100 mil dólares!!! Demorei muito para fechar tudo porque eu entrei em uma fase de muitos questionamentos… Tive que fazer uma reflexão muito profunda para relembrar os motivos que começamos o Coquetel Molotov e porque resistimos e existimos até hoje. Temos um objetivo que é realmente ser um festival de fomento e não de momento. Entende a diferença?”
A diferença é que Ana Garcia quer criar experiências únicas, trazer novos artistas e proporcionar para o público novidades.
“Com o boom dos festivais de agência, eu passei a me questionar, mas fiquei feliz de encontrar o meu caminho. Então, foi realmente um foco em buscar novidades, lançamentos e artistas homenageados… Como a apresentação da Orquestra Jovem de Pernambuco, que foi criada pelo meu pai, que faleceu no ano passado, e vai fazer uma homenagem aos 30 anos do Manguebeat com a participação de Karina Buhr. Isso vai ser lindo!”
Para além do No Ar Coquetel Molotov
Além de estar à frente do festival, Ana Garcia também atua em outras áreas do mercado musical, como curadora, produtora e assessora de imprensa.
“Eu realmente sinto tesão quando estou envolvida com novos projetos e lançamentos. É meio o que faz o meu motor andar… Eu gosto, sempre gostei, mas é super desgastante e estressante também. É difícil encontrar esse balanço, ainda mais em um estado que não tem mecenato — como é o caso da Bahia, Pará, Minas Gerais. Então, deixamos de receber muitos patrocínios por causa disso. Essa vai ser a minha batalha para 2023 fazer existir o mecenato em Pernambuco! Precisamos disso para sobreviver.”
A empresária lembra que há 10 anos ela era uma das poucas que participavam das feiras e mesas sobre o mercado musical.
“É muito bom poder ver as mulheres ganhando o spotlight e podendo trocar experiências. Elas sempre estiveram lá, mas a oportunidade era dada para os outros.”
E por estar lá, Ana Garcia foi indicada ao WME Awards, maior prêmio destinado à mulheres no mercado musical do mundo. A empresária recorda da emoção que sentiu por estar presente entre tantas profissionais que atuam no setor e ainda destaca que foi a primeira nordestina a vencer a categoria de Empreendedora Musical.
“Eu fiquei muito emocionada só em ser indicada. Acho que fui indicada duas vezes… mas a concorrência é grande. São muitas mulheres de setores diferentes incríveis! Eu achei maravilhoso ser reconhecida e ter a oportunidade de falar no palco de outras mulheres que me inspiraram e começaram na mesma época. Foi incrível ser a primeira Nordestina a ganhar esse prêmio. Eu torço para que o WME consiga cada vez mais trazer mulheres de todo o Brasil para a indicação. Está crescendo cada vez mais!”
Coquetel Molotov: No Ar há 20 anos
Além do orgulho de conseguir continuar com o festival durante todos esses anos, Ana Garcia se emociona com o reconhecimento dado ao evento. E ainda aconselha aos profissionais que estão dando o pontapé no mercado:
“É muito bom poder viajar e as pessoas só terem coisas boas a falar do festival. Acho que o meu conselho seria: dedique-se 100% e não desista. Você vai receber um milhão de nãos, mas quando chega aquele sim, faz tudo valer a pena. Tenha persistência e paciência que as coisas vão se encaixando para aqueles que dão o melhor de si. Tenha propósito!”