Dá para separar o artista da obra? Fui pego pensando nisso quando soube da estreia do novo filme do Woody Allen no Brasil. Um filme que a própria Amazon cancelou nos Estados Unidos por conta das acusações de abuso sexual e pedofilia que pairam sob a cabeça do cineasta. Mas eu gostava tanto dos filmes dele! Aí me lembrei de Michael Jackson – acusado dos mesmos crimes. Outro dia estava no carro e tocou “Heal the World” na playlist do motorista. O mesmo homem que supostamente abusou de criancinhas escreveu “Heal the World” (cujo clipe, coincidentemente, também é com criancinhas, representando o futuro do planeta). O que a gente faz nessas situações? Desvaloriza a obra pelos antecedentes do criador ou entende que a pessoa pode até não prestar mas o artista é incrível mesmo assim?
Alguns atores doaram o cachê que receberam por esse filme de Woody Allen – caso de Selena Gomez. Algumas rádios pararam de tocar Michael Jackson… para sempre. Por outro lado, Vanessa Hudgens disse recentemente que amaria fazer um filme com o cineasta. E, no momento em que escrevo essa coluna, o Rei do Pop (ele ainda é, certo?) está com dois álbuns na parada dos Estados Unidos. Obviamente, não há uma unanimidade quanto ao que fazer diante de casos assim. Vai do quanto a gente acredita na culpa e no quanto aquilo nos repugna. Woody e Michael não foram considerados culpados nem condenados. Talvez seja melhor trocar o exemplo: Chris Brown.
O cantor agrediu fisicamente a então namorada Rihanna em 2009 e ela deu queixa na polícia. Todo mundo conhece essa história. Ele imediatamente se tornou um dos homens mais odiados do planeta. Antes de cometer o crime, Chris Brown tinha colocado nove músicas no Top 10 da Billboard Hot 100 em quatro anos – incluindo dois singles #1 (“Run It!” e “Kiss Kiss”). Era um astro em ascensão. Depois da agressão, ele colocou cinco músicas no Top 10 em dez anos. Ele se negou a cair no ostracismo, porque seguiu trabalhando para sua base de fãs fiéis, mas a verdade é que pega muito mal você ser fã do Chris Brown depois de tudo que aconteceu. Em geral, o grande público se afastou. Ele foi “cancelado” antes mesmo do termo existir. A gente – posso falar por nós? – tem meio que aversão a ele e a tudo que venha dele.
Existem alguns fatores envolvidos na decisão de renegar a obra de Chris Brown. Analisemos friamente: se suas músicas faziam tanto sucesso é porque a maioria das pessoas as considerava boas. Um fato da vida pessoal dele – a agressão – apaga a qualidade do repertório? Em 2011, eu ouvia “Next To You” (feat. Justin Bieber) escondido, preciso dizer. Mas era um mp3 baixado por aí. Isso muda algo? Eu entendo que, ao renegar uma obra pelo histórico do artista, estamos mandando duas mensagens: não queremos ser cúmplices (esse sentimento levou Lady Gaga, Celine Dion e Pussycat Dolls a excluírem da Internet suas músicas com R. Kelly, uma espécie de assediador em série) e não queremos beneficiar economicamente alguém que consideramos mau. Mau-caráter, vilão, monstro, depende do caso, mas a ideia é essa. É claro que não quero dar dinheiro para um agressor de mulheres! Ou um abusador de criancinhas! Ou um… estuprador. Vamos falar de Dr. Luke?
Ele é co-autor e/ou co-produtor da era de ouro da Katy Perry, que vai de “I Kissed a Girl” a “Dark Horse”. Também está por trás de “My Life Would Suck Without You” (Kelly Clarkson), “Party In the USA”, “Wrecking Ball” (Miley Cyrus), “Price Tag” (Jessie J), “Hold It Against Me” (Britney Spears), “Where Have You Been” (Rihanna), “Sugar” (Maroon 5)… chega, porque se for listar tudo que é bom e inesquecível, a lista fica imensa! Mas ele virou o monstro que abusou da Kesha desde 2014, quando a cantora entrou com um processo contra ele na Justiça. A gente detesta Dr. Luke, certo? Mesmo que ele não tenha sido condenado, a gente detesta, porque a ideia de um estupro é repugnante demais. Mas e aí? A gente deixa de ouvir tudo que ele fez? Notavelmente, tudo que ele produziu depois do processo foi ignorado (o cara está até usando um pseudônimo para trabalhar sem prejudicar seus novos trabalhos). Mas e esses hits que marcaram nossas vidas? Exclui das playlists? Finge que não existiu? Porque é sobre isso que estou falando. Você pode dizer “ah, mas ele produziu, não são músicas só dele”. As músicas do Chris Brown e do Michael Jackson também não são só deles. Os filmes do Woody Allen também não são só dele. A indústria cultural, com raras exceções, não é marcada por trabalhos 100% individuais. Quase sempre tem uma galera envolvida por trás dos grandes nomes que encabeçam projetos. Se eu opto por parar de ouvir Michael Jackson ou Chris Brown, não seria coerente eu também parar de ouvir “Dark Horse” e “Wrecking Ball”, por exemplo?
Não é fácil cancelar Woody Allen e Michael Jackson porque sabemos que eles são geniais. Já haviam nos conquistado. É muito simples dizer que “Fulano está cancelado” quando, na verdade, não consumíamos o trabalho da pessoa antes. Nego do Borel e Biel, por exemplo. Quando eles foram acusados respectivamente de transfobia e assédio, a comunidade LGBTQI+ sobretudo abraçou as vítimas e decretou: “cancelados”. Mas, sejamos francos, a gente não ouvia nem Nego do Borel nem Biel antes. Então, na prática, não mudou nada. Não é um grande ato se negar a dar stream para alguém que, na verdade, você nunca deu mesmo. Dr. Luke é “só” um produtor. Não estava sob os holofotes até então. A gente não tinha uma relação de afeto por ele quando estourou o escândalo. É fácil detestar o combo ele+obra, pensando superficialmente. Mas, na prática, se for esmiuçar tudo que ele já fez, é duro se desfazer desse catálogo. Neste caso, sua obra não é superior a sua pessoa?
Caso não dê para separar o artista da obra, aqui está a lista do que você deve se desfazer:
A arte não nasce da perfeição e, dizendo isso, não quero glamorizar crimes (longe de mim!). Mas artistas, em geral, têm suas questões. Não são perfeitos. Ser artista, como estamos vendo cada vez mais, não é garantia de ser uma pessoa admirável. Oh, com certeza não. Mas o público em geral busca e enxerga uma perfeição (que não existe) nos ídolos. Uma perfeição que pode ser artística, mas nunca humana. Que tipo de falha mancha a obra? O que não é aceitável? Estupro, assédio, assassinato e violência contra mulheres são quase unanimidade nesta resposta. Racismo, homofobia e sexismo deveriam ser, mas a verdade é que não revoltam toda a sociedade. Qual o grau do desvio justifica uma condenação social ao ostracismo? Pense no seu ídolo, aquele artista que você mais ama. Que informação da vida pessoal dele afetaria sua experiência com a obra artística? Eu nunca mais vou ouvir “Man In the Mirror” sem algum desconforto depois de assistir “Leaving Neverland” – mas tampouco deixei de escutar. Já faz dez anos que Michael Jackson morreu e volta e meia sai alguma notícia dando conta que ele rende mais dinheiro morto do que vivo. Sua obra vem sobrevivendo ao tempo – e aos escândalos. Na minha opinião, suas músicas se provaram maiores do que o próprio Michael Jackson. O legado artístico é inegável. Sua biografia não sufocou sua arte. Não é o caso de Chris Brown, por exemplo. Tudo indica que Chris Brown será mais lembrado pela agressão do que por qualquer outra coisa, mas posso estar errado.
Não tenho respostas para esse tema, nem para todas as perguntas que levanto. Às vezes a biografia de um artista faz a gente gostar mais de sua obra, certo? Todo mundo ama Lady Gaga um pouco mais por todo seu ativismo LGBTQI+, por exemplo. Parece-me lógico, então, que o contrário também aconteça. O desejo de não querer compactuar com um absurdo ou uma monstruosidade é legítimo. Mas e quando a obra é muito boa? Não consumi-la, por convicção moral, passa a ser um sacrifício. Faz sentido o sacrifício? É sempre possível? Ou melhor: é sempre necessário?
OBS: A gente pode continuar esse assunto no Instagram – @falaleonardo.