in ,

Como Bad Bunny denunciou os problemas de Porto Rico para o mundo

Astro porto-riquenho lançou um clipe-documentário em parceria com a jornalista Bianca Graulau

Foto: Jon Kopaloff/Getty Images (Uso autorizado ao POPline)

Talvez o sucesso comercial de Bad Bunny seja unicamente por conta de suas músicas irresistíveis, que mesclam elementos da cultura latina com o hip hop e o pop, mas essa parece ser uma visão ingênua do poder que o cantor porto-riquenho tem em suas mãos e faz questão de usar. Sem fazer grandes concessões culturais, o astro de 28 anos transformou-se num fenômeno da música global cantando faixas em espanhol e promovendo parcerias musicais com o seus iguais.

Foto: Kevin Winter/Getty Images (Uso autorizado ao POPline)

LEIA MAIS: 

Com toda atenção do mercado voltada para ele e o seu poderoso disco “Un Verano Sin Ti” – que coleciona 11 semanas no primeiro lugar da Billboard 200, um recorde na principal parada de álbuns dos EUA -, o artista aproveita a visibilidade para denunciar o processo de gentrificação e especulação imobiliária promovidos por pelos colonizadores estadunidenses na ilha de onde ele vem, em uma espécie de clipe-documentário para a canção “El Apagón“.

O vídeo de Benito (nome de batismo do cantor) é desenvolvido em um formato híbrido, com a parte documental dirigida pela repórter independente Bianca Graulau e um passeio musical festivo por Porto Rico sob o comando de Bad Bunny. O projeto foi batizado de “El Apagón – Aquí Vive Gente” e destrincha didaticamente alguns problemas sociais da ilha – como os apagões, privatizações das praias e abandono dos moradores – e a relação deste cenário com os Estados Unidos e governantes locais.

Foto: Arturo Holmes/Getty Images (Uso autorizado ao POPline)

A peça audiovisual de quase 23 minutos e foi disponibilizada no canal do cantor no YouTube no dia 19 de setembro e, duas semanas depois, coleciona mais 7,7 milhões de visualizações. Grandes veículos de imprensa destacaram a iniciativa do artista, entre eles o site da Billboard norte-americana e a rede britânica BBC. Nas redes sociais, os fãs destacaram que os não-porto-riquenhos devem assistir ao documentário para entender as injustiças que acontecem na ilha.

Essa não foi a primeira e, provavelmente, não será a última vez que Bad Bunny usa o alcance de sua música para chamar a atenção do mundo para os problemas da sua comunidade porto-riquenha. Ações da voz de “Me Porto Bonito” são sempre enaltecendo a cultura latina com um verniz alegre, original e quase sempre festivo – mas não menos relevante do ponto de vista sócio-político.

Porto Rico é um país?

Porto-riquenhos até a lua”, é quase um lema da população que vive no território que pertence aos Estados Unidos há mais de 120 anos. Porto Rico foi uma colônia espanhola por mais de 4 séculos, antes de ser conferido aos estadunidenses no processo de independência de Cuba, que resultou na Guerra Hispano-Americana, no fim do século passado.

Bad Bunny Foto: Joe Raedle/Getty Images (Uso autorizado ao POPline)

Apesar da relação de dependente dos EUA, a ilha tem Constituição própria, mas o governo local tem poderes limitados e as principais decisões – diplomáticas e econômicas – são tomadas em Washington, D.C. Esse modelo de Estado foi categorizado como “livre-associado“, com eleições para o poder legislativo e governador.

Os porto-riquenhos voltaram a questionar com maior intensidade a relação com os colonizadores em 2017, quando o furação Maria devastou parte da ilha e recebeu pouca atenção dos Estados Unidos. Além disso, o território sofre com a crise fiscal abordada no documentário de Bad Bunny e Bianca Graulau. El Apagón – Aquí Vive Gente” evidencia como, apesar dos problemas sociais, causados pela relação colonialista/capitalista, o povo de Porto Rico é orgulhoso de sua cultura latina e da trajetória de luta política.

LEIA MAIS: 

Denúncias de Bad Bunny

Após a passagem do furacão Maria pela ilha, os governantes locais deram a uma empresa privada estadunidense a administração da operação de energia em Porto Rico. Durante os 15 anos previstos em contrato, a Luma Energy deveria fornecer infraestrutura para o território afetado pelo catástrofe a fim de sanar os apagões que duram semanas e até meses.

O documentário-clipe de Bunny e Graulau mostram como a falta de eletricidade continua afetando o povo porto-riquenho. Um dos casos reportados pelo filme aconteceu em agosto deste ano, em um dos hospitais mais importantes do país. O Hospital Universitário de Adultos ficou sem energia elétrica por quase um dia.

Foto: Gladys Vega/Getty Images (Uso autorizado ao POPline)

Horas após o lançamento do projeto de Bad Bunny com a documentarista furacão Fiona atingiu Porto Rico e mais de 1 milhão de pessoas ficaram no escuro. Embora o serviço não tenha melhorado com a chegada da empresa estadunidense, os porto-riquenhos sofreram com sete aumentos consecutivos em sua conta de luz.

O documentário também aborda a gentrificação de San Juan – capital e maior cidade da ilha. Grandes imobiliárias, muitas delas de capital estrangeiro, compram prédios inteiros em locais estratégicos para a construção de apartamentos para locação temporária ou para a venda a preços exorbitantes para estrangeiros. O video-doc acompanha o processo de uma moradora que, assim como muitos outros, recebeu um aviso de 30 dias para deixar o seu apartamento. Os moradores de bairros históricos de Porto Rico dificilmente conseguiriam arcar com os valores dos novos empreendimentos imobiliários naquelas áreas.

Fã em show de Bad Bunny em Porto Rico Foto: Joe Raedle/Getty Images (Uso autorizado ao POPline)

A terra de Bad Bunny se tornou um destino atraente para empreendedores de diversos setores por conta de uma lei de isenção fiscal que permite que investidores não paguem impostos sobre ganhos de capital após se tornarem residentes da ilha.

A Lei de Incentivo à Transferência de Investidores Pessoais, conhecida como “Lei 22” parece beneficiar estrangeiros e não dar retorno aos porto-riquenhos. Com a chegada de mais de 3 mil novos moradores-investidores, moradias populares e prédios históricos passaram a ser comprados e transformados em apartamentos de alto padrão para turistas e resorts.

Foto: Joe Raedle/Getty Images (Uso autorizado ao POPline)

Segundo “El Apagón – Aquí Vive Gente“, existe uma relação próxima de doação de dinheiro entre os investidores e os políticos e partidos que garante a manutenção da lei. Como um problema acaba desencadeando outro, a privatização das praias com mansões milionárias também é um ponto para o qual o documentário chama a atenção. Embora todas as praias da ilha sejam públicas, grandes mansões de luxo estão “cercando” esses locais, impedindo que os porto-riquenhos tenham acesso garantido.

A lei exige que haja entradas para a praia entre propriedades particulares e que uma margem de 20 metros de areia seja destinada ao uso público. Bianca Graulau reporta que isso às vezes é ignorado pelas autoridades, mas que os cidadãos estão atentos e lutando por seus direitos.

Conexão Porto Rico – Brasil

Embora a abordagem de Bianca no videoclipe de Bad Bunny seja caracterizada pelas demandas de Porto Rico, os problemas denunciados não são distantes da realidade brasileira. Enquanto famílias ricas proporcionalmente pagam menos impostos do que os mais pobres por aqui, é comum que a população economicamente vulnerável tenha o acesso à moradia dificultado e, muitas vezes impedido. Da mesma forma, o atual Ministro da Economia Paulo Guedes sugeriu, em recente entrevista ao podcast Flow, que as praias brasileiras fossem privatizadas. A ideia é proibida por lei, mas é comum que a especulação imobiliária mude as paisagens desses lugares e dificulte a aproximação da população mais pobre.

Artistas da música brasileira já abordaram esses temas em diversas composições. O BaianaSystem, por exemplo, canta sobre gentrificação e a mudança das praias em “Lucro (Descomprimido)“, faixa do importante álbum “Duas Cidades“, de 2016.

(Fontes: BBC News, UOL)