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Prince: “Welcome 2 America” é um epílogo oportuno em nebuloso 2021

Trabalho póstumo gravado em 2010 desponta como seu melhor em duas décadas

Crédito: Mike Ruiz

Em seus últimos anos, Prince andava tão prolífico que permitia-se gravar discos inteiros e guardá-los em seu lendário arquivo em Paisley Park. A última descoberta, Welcome 2 America, é um álbum de pop funk e r&b gravado em 2010 e que desponta como seu melhor trabalho em duas décadas. Há quem diga que o artista amou o resultado final. Mas por qual razão ele teria arquivado o projeto? Passados 11 anos, surpreende o fato das canções soarem mais que oportunas neste nebuloso 2021.

Crédito: Mike Ruiz

A base do álbum foi gravada por Prince, o virtuoso baixista Tal Wilkenfeld e o baterista Chris Coleman. Completam a banda o tecladista Morris Hayes e o trio Shelby J., Liv Warfield e Elisa Fiorillo, que funcionam mais como “co-vocalistas” do que necessariamente “cantoras de apoio tradicionais”. E a química entre os músicos é inegável desde a faixa-título, que abre o álbum.

“Welcome 2 America” é uma espécie de prima distante de “Sign ‘O’ The Times” (1987). Um r&b cortante, com sua linha de baixo pesada e os apontamentos sobre os valores americanos. A canção vai do minimalismo a momentos mais exuberantes, com Prince optando por versos falados em contraponto às backing vocals que amplificam o fator soul.

Na letra ele faz discursos escabrosos sobre a quebra do mercado imobiliário de 2008, ataca políticos mentirosos, fala sobre fé, fama, sexo e demonstra seu desprezo por iPhones e reality shows.

Ele continua seu quadro de distopia americana na funky “Running Game (Son of a Slave Master)”, onde acusa a indústria da música (que tanto detestava) de tirar vantagem de músicos iniciantes, sobretudo no rap e no hip-hop. Já em “Born 2 Die” há um brilho de Curtis Mayfield enquanto o falsete de Prince nos fala de uma mulher fazendo tudo o que pode para mantê-la livre da agitação das ruas.

Na enigmática “1010 (Rin Tin Tin)”, Prince pergunta: “O que poderia ser mais estranho do que o tempo em que estamos?“. É mais uma crítica à “muita informação” em um “deserto de mentiras”. Com “1000 Light Years From Here”, Prince mostra suas habilidades incomparáveis na guitarra e sonha com uma nova ordem mundial sem preconceitos. É uma performance que soa como o refinado Nile Rodgers e o rústico Keith Richards reunidos em uma só pessoa.

Essas quatro últimas faixas citadas se alinham perfeitamente a temas como “Controversy” (1981), “Race” (1994), “Baltimore” (2015) e outras canções onde Prince descreve como os Estados Unidos impõem uma condição social destrutiva para os negros.

Mas o disco vai além das canções de protesto. É também uma viagem alegre pelos diversos gêneros que Prince explorou em quatro décadas de carreira. “Hot Summer” é uma ode ao pop/rock de sua discografia na primeira metade dos anos 1980. “Check The Record” é um rock/funk sobre infidelidade.

“Yes” cruza o glam guitar com vocais gospel, “Same Page, Different Book” é uma incursão mais relaxada ao funk setentista com letra sobre conflitos religiosos, enquanto “Stand Up And B Strong” é uma linda (e dolorida) power ballad gravada originalmente pelo Soul Asylum.

“When She Comes” relembra os tempos em que o astro entregava seu melhor material – e eles surgiam quando estava com tesão. Com base em piano, leve dedilhado de guitarra e vocais em falsete, Prince descreve o orgasmo de sua amante de uma maneira que só ele poderia.

A faixa de encerramento “One Day We Will All B Free” emula Stevie Wonder (mais um de seus heróis musicais), com mudanças de acordes jazzísticos. O aspecto de justiça social do álbum (e sua alma) parece um descendente de “There’s a Riot Goin’ On” (1971), de um dos grupos favoritos de Prince, Sly and the Family Stone.

Crédito: Mike Ruiz

No fim das contas, é difícil imaginar como “Welcome 2 America” seria recebido se Prince o lançasse em 2010. Quatro anos antes ele conseguiu um sucesso improvável com “Black Sweat”, do álbum “3121“, que musicalmente soava uma versão reimaginada do hit “Kiss” (1986). Contudo, este foi seu único sucesso na Billboard desde 1999.

A música pop em 2010 era dominada por hits de Katy Perry, Ke$ha, Lady Gaga, Justin Bieber e Black Eyed Peas. E nenhum deles soa parecido com algo em “Welcome 2 America“. A verdade é que Prince não estava mais interessado na vida pop. “O mundo está repleto de informações errôneas. A visão de futuro de George Orwell está aqui. Precisamos permanecer firmes na fé nos tempos de provação que virão“, disse à época das gravações.

Na América polarizada de 2021, a perspectiva de Prince é mais necessária do que nunca. Sobretudo neste momento em que rolamos a tela do celular e nos deixamos abalar com inverdades do feed de notícias incrementadas por algoritmos.

Welcome 2 America” é um epílogo impressionante para a carreira de um artista único, que (ainda) faz ecoar sua voz criativa em uma sociedade duvidosa.