Em 1993, lutando contra sua gravadora à época pela propriedade de suas obras e fitas master, Prince trocou seu nome por um símbolo impronunciável e indescritível que acabou conhecido como ‘The Love Symbol’, uma cruz curvilínea que mesclava os gêneros masculino e feminino. “Se você não possui suas masters, elas possuirão você“, disse o cantor sobre tal imbróglio. Você já ouviu história parecida entre Taylor Swift e seu ex-empresário Scooter Braun, não é mesmo?
Foram sete anos até que o astro “desfizesse” tal subversão da identidade racial e de gênero e voltasse a usar seu nome de batismo. Como um visionário, a redefinição de Prince acabou por lançar as bases para artistas não-binários de hoje como Sam Smith, Demi Lovato, Majur, Jaloo e muitos mais.
Com o autocontrole estudado de David Bowie, mas tão escorregadio como Little Richard, a quietude aveludada de Prince era a própria contradição de um artista que fundiu funk e rock para se tornar um ícone pop (quase) às avessas.
Como ele cantou em “Controversy”, sua imagem “não era preta ou branca… não era hetero ou gay“. Ou em “I Would Die 4 U”, quando ele cita logo nos primeiro versos: “Não sou uma mulher, não sou um homem. Sou algo que nunca compreenderás“.
Sua visão inclusiva de gênero inspirou um jovem Frank Ocean a desvendar-se para o mundo. “Prince era um homem negro heterossexual que fez sua primeira apresentação na TV usando biquíni e botas de salto alto“, disse o rapper, que é homossexual. “Ele fez me sentir mais confortável com a forma como eu me identifico sexualmente simplesmente por sua exibição de liberdade e irreverência“, completou.
Como não lembrar de D’Angelo, que com o clipe de “Untitled (How Does It Feel?)” provocou o homoerotismo latente no hip hop do início dos anos 2000? Herança direta de um indefinível artista alimentado por sua imagem andrógina, que abraçava com fervor sua feminilidade e questionava as ordens vigentes de masculinidade, sobretudo como um homem negro deveria agir em sociedade.
Toda vez que um artista ou compositor afirma usar a sexualidade como meio de fortalecimento, estará seguindo os passos de um homem que compôs “Darling Nikki”, música sobre uma garota que se masturbava com uma revista. Tal ousadia fez com que a indústria fonográfica americana criasse o selo “Parental Advisory” para discos que trouxessem letras com excesso de palavrões ou referências vistas como inapropriadas.
A evolução do r&b ao longo das últimas quatro décadas deve muito a Prince, desde as inclinações psicodélicas do movimento neo-soul. Erykah Badu twittou que Prince “(está) em minhas células”, passando pelo TLC, que registraram sua versão da ambígua “If I Was Your Boyfriend” em seu multiplatinado álbum CrazySexyCool (1994), e chegando em Alicia Keys, que registrou a b-side “How Come U Don’t Call Me Anymore?” em seu trabalho de estreia Songs In A Minor (2001).
É impossível medir o quanto o mundo realmente deve a este gênio do pop, rock, jazz, funk e até mesmo hip-hop. Mas é incontável a gama de artistas que transformaram tamanha adoração em uma forma de arte por si só. Para tal selecionamos 7 artistas pop que talvez não fossem tão brilhantes sem a influência atemporal de Prince.
Beyoncé
Há alguns anos, Beyoncé relembrou sua performance ao lado de Prince no Grammy 2004 em uma entrevista para a Giant Magazine. “Ele me garantiu que teríamos uma semana inteira para ensaiarmos e me acalmar. Foi ideia dele e isso foi tão inteligente. Acho que ele sabia que as pessoas ficam maravilhadas porque ele é incrível. Isso me deixou muito confortável“, disse a cantora.
Como Prince, Beyoncé também tinha uma persona que subia ao palco (Sasha Fierce). Assim como ele, Bey entende a importância da ousadia, da pirotecnia e do figurino para ajudar a completar uma performance. “Naquela noite eu estava em transe. Não lembro de nada após entrar em meio à fumaça. Definitivamente era a Sasha Fierce naquele palco“, completou.
E para quem acha que Beyoncé foi a primeira grande artista a lançar um álbum de surpresa, precisamos informar que Prince já havia feito o mesmo em 1985, quando colocou Around The World In A Day nas lojas sem anúncio prévio e sem uma música de trabalho nas rádios.
Bruno Mars
Cabelo comprido, óculos escuros grandes e ternos extravagantes são apenas algumas das formas como Bruno Mars canaliza Prince em sua maneira de se vestir. Musicalmente falando, a influência de Prince é sentida na mistura de pop, hip hop e soul em sua música, bem como sua incrível performance no palco. Mars agradeceu a Prince, juntamente com outras lendas da música, quando ele ganhou o Grammy de Gravação do Ano em 2016.
Poucas semanas depois, Prince nos deixava e Mars fez uma publicação emocionante. “Você é um dos meus heróis e ninguém pode me dizer o contrário, nem mesmo você. Tenho a sorte de ter testemunhado sua grandeza. Sua música viverá para todo o sempre e sempre terá um lugar especial em meu coração. Obrigado“, Junto da mensagem, um bilhete escrito à mão por Prince onde se lia: “Bruno – que seus únicos heróis sejam Deus e você – paz e seja selvagem“.
No ano seguinte, Mars subiu ao palco do Grammy para um tributo em homenagem a um de seus heróis.
Lady Gaga
Se há uma artista trabalhando atualmente que respeita o poder que a moda pode imprimir na sociedade – tanto quanto Prince respeitou – é Lady Gaga. O vestido de carne do VMA 2010 foi tão chocante quanto um homem heterossexual vestindo biquini, meia arrastão e salto alto nos anos 1980.
Embora Prince provavelmente tenha influenciado a atitude “quem se importa” de Lady Gaga, ela confirmou que ele também desempenhou um papel em seu som. Em uma entrevista à NME, Gaga afirmou que Prince é uma de suas influências na música – mais especificamente seu hit “Born This Way”.
The Weeknd
Abel Tesfaye – ou para os mais chegados The Weeknd – pode não ser muito extravagante, mas suas músicas sexy, lentas e com vocais agudos de tenor têm muito de Prince impregnado nelas.
“Prince estava sempre superando limites. Michael também estava fazendo isso, mas não era tão experimental. Prince transformou a música experimental em música pop“, afirma o canadense que citou Prince como uma inspiração vocal em entrevista à Complex.
“‘When Doves Cry’ e toda a trilha sonora de “Purple Rain” foi inspirada pelo Cocteau Twins e pela new wave. De alguma forma aquele tipo de som era difícil de digerir. Mas o toque de Midas dele fez toda diferença. Imagem, letras, conteúdo, narrativa, trabalho coeso: isto é Prince para mim“, completou o cantor do hit “Blinding Lights”.
> LEIA MAIS: Como Prince subverteu música, indústria e comportamento desde os anos 80
Rihanna
O estilo provocador de Rihanna, tanto na música quanto nos red carpets, vem direto do manual de Prince. Podemos até ousar em dizer que “Kiss It Better”, com seus épicos solos de guitarra e letras abertamente sexuais, seria a moderna “Purple Rain”. As semelhanças entre os dois artistas se tornaram até mesmo um meme da internet quando alguém adicionou um bigode a la Prince à capa da Glamour em 2013.
Ambos têm os mesmos tons de pele, maçãs do rosto e muito mais. Tudo o que Prince precisaria é de um pouco mais de carne nas bochechas e ele teria uma irmã gêmea idêntica- com a mesma personalidade e que pouco se importa sobre o que pensam dela.
Miguel
Do topete ao gosto pelas franjas no visual, e até à quase total recusa em cobrir o peitoral, Miguel é um produto do Purple man. Como Prince, sua presença de palco é religiosamente sexual e nos faz questionar se ele não é secretamente de outro planeta enviado à Terra para seduzir a todos nós.
O r&b supersexual e descolado de Miguel deve totalmente ao som de Prince. “Não há nenhuma maneira de Prince não ser uma influência musical minha“, disse ele à Entertainment Weekly. “Eu cresci olhando para ele não apenas como músico, mas como um ícone, alguém que estava ultrapassando os limites em sua arte“.
Ao ser comparado com o homem, o cantor de “Adorn” diz: “Cara, como alguém se compara ao Prince? Existem tantas camadas em sua arte: escritor, virtuoso e gênio. É legal as pessoas escolherem partes dele que veem em mim porque ele é uma das minhas maiores influências. Mas eu nunca me compararia a ele“, assume o modesto cantor.
Janelle Monáe
Prince foi um dos mentores de Janelle Monáe, ao lado de Big Boi de Outkast. “É uma coisa linda ter um amigo – alguém que se preocupa com a sua carreira e quer ver você ir longe, ultrapassar os limites e sacudir o mundo – dar tudo o que puderem para a causa. Prince foi um mentor, um amigo e um herói musical meu. E ainda é“, disse a cantora.
No minuto em que Monáe pisa no palco, torna-se explícita sua inspiração em Prince. Em dança, música e atitude. Desde que decidiu usar qualquer figurino – sobretudo seus impecáveis smokings e gravatas borboleta -, a artista emula a dualidade que Prince impôs para si desde os anos 1980. Vai além de sexualidade, mas sim um poderoso coquetel de roupas masculinas e femininas.
Arte mais viva do que nunca
Em quase quatro décadas de carreira, Prince inspirou os mais variados tipos de artistas e seguirá intrigando corações e mentes. Em 2021, os fãs serão agraciados com mais um álbum de composições inéditas previsto para 30 de julho.
A faixa-título “Welcome 2 America” é um r&b cortante de cinco minutos e meio, com letra opinativa e claramente cética em relação aos rumos da América atual. A canção vai do minimalismo a momentos mais exuberantes, com Prince optando por versos falados em contraponto às backing vocals que amplificam o fator soul.
Prince critica a tecnologia moderna logo no primeiros verso: “Bem-vindo à América / Distraído pelos recursos do iPhone / (Tenho um aplicativo para cada situação)“. Em outros versos critica os políticos mentirosos, questiona a música contemporânea, fala sobre fé, fama e sexo.
Já “Born 2 Die”, segundo single deste trabalho, nasceu de uma conversa com o produtor Morris Hayes, que contou como o cantor sempre buscou novos desafios. “Ele estava assistindo a vídeos de seu amigo, Dr. Cornel West no YouTube, e durante um discurso o Dr. West disse, ‘Eu amo meu irmão Prince, mas ele não é Curtis Mayfield’. Então Prince disse: ‘Ah, é mesmo? Vamos ver’”.
Para quem não sabe, Curtis Mayfield (1942-1999) foi um dos nomes mais importantes da black music norte-americana. Multi-instrumentalista, tocava guitarra, baixo, piano, saxofone e bateria. Ao lado de nomes como Al Green, Isaac Hayes, Marvin Gaye e Stevie Wonder, Mayfield também é lembrado como um dos pioneiros das músicas de consciência sócio-políticas do movimento negro nos Estados Unidos.
A faixa foi gravada durante a primavera de 2010, em uma época bastante prolífica para o artista. Em paralelo, o presidente Barack Obama tinha apenas um ano em seu primeiro mandato e Prince estava refletindo profundamente sobre as questões que afetavam a comunidade negra e o papel que ele esperava desempenhar no movimento de justiça social.