#Noticias

Porão do Rock 2019 vence as adversidades, resiste à falta de incentivos fiscais e celebra a diversidade musical

Ao longo das últimas décadas, Brasília revelou-se mais que um celeiro de boa música. Se no final da década de 1970 predominavam os ritmos regionais como o forró e a música sertaneja, nos anos 1980 o rock com influências do punk despontou com força. Na década seguinte foi a vez do hardcore, do reggae e outros movimentos culturais darem as cartas. Esta diversidade sempre foi a marca do festival Porão do Rock, conhecido por revelar novas bandas no cenário nacional. “O Porão representou uma mega demanda reprimida de uma cena gigantesca de Brasília que vinha dos anos 1980. Nos anos 1990, houve uma renovação com várias bandas que, obviamente, se espelharam naquelas”, conta o idealizador e produtor, Gustavo Sá.

Este evento, lançado em 1998 na Concha Acústica a partir de um grupo de músicos que se reunia no subsolo de um prédio comercial em uma das quadras da Asa Norte, ganhou, em 2000, sua primeira versão em maior escala no estacionamento do Estádio Mané Garrincha, onde é realizado desde então. Porém, a mudança repentina na data desta edição e os cortes de investimentos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) do governo Bolsonaro foram determinantes para uma readequação.

“Eu tive que repensar o evento e fazer um formato menor. Primeiramente, tivemos que adiar por causa de um jogo de futebol. Perdemos toda a pré-produção de seis meses e tivemos que refazê-la em um mês e meio. Isso envolve investimentos em redes sociais, equipe de Comunicação, artistas que não puderam reagendar a apresentação e perdemos o sinal do cachê, passagens aéreas internacionais que perdemos”, lamenta Gustavo, que ainda assim manteve a política de ingressos a preços acessíveis.

Para além dos desafios superados, no meio disso tudo há pessoas ávidas por música. Com 26 artistas, o line-up conta predominantemente com bandas de rock – em suas variadas vertentes -, mas abre espaço para gêneros nordestinos, rap e hip hop. “Não dá pra negar que o Criolo é uma expressão mega importante na música. A galera tem que ultrapassar essa questão que rock não é só a música. A atitude do Criolo é muito mais rock and roll do que muitas bandas. A Academia da Berlinda é pra dar um molho na programação, mostrar outras coisas. Todas as grandes bandas nacionais já tocaram aqui. E como temos essa longevidade, a gente não pode soar repetitivo”, explica o produtor.

O Porão do Rock 2.1 aconteceu nas dependências do Estádio Mané Garrincha neste último fim de semana [Foto: Coletivo N3RVO]

A pressão é muito maior quando tocamos em casa“, analisa Digão, vocalista dos Raimundos

Aproximadamente 500 bandas já passaram pelo Porão do Rock ao longo dessas duas décadas. A noite de sexta-feira (25) foi integralmente dedicada ao rock extremo. O público estimado em 6 mil pessoas, de acordo com a organização do festival, chegou cedo ao Mané Garrincha e conferiu de perto a apresentação de bandas como Imortal Joe, Never Look Back, Moretools, Galinha Preta, Escape the Fate, Project 46 e Dead Fish. A diversidade de estilos era tamanha que logo após o punk hardcore do Ratos de Porão (sem João Gordo, que se recupera de um problema de saúde) foi a vez do metal sinfônico de Edu Falaschi, que mostrou as canções do álbum “Temple of Shadows”, que gravou em 2004 com o Angra.

Sem sair do rock, mas incorporando elementos de ska, reggae, pop e eletrônico, a banda Dona Cislene fez um dos shows mais animados e mostrou as canções de seu novo álbum “TempoRei”. Quem se destacou na programação foram os Raimundos. Antes de subir ao palco, Digão conversou com o POPline sobre a expectativa de tocar mais uma vez no palco do festival que catalisou a carreira do grupo. “Eu sou daqui de Brasília e se a gente não agradar aqui, como faremos em outros lugares? Tocar aqui faz com que a camisa pese bem mais”, garante o vocalista. Com setlist focado nas potentes canções do homônimo álbum de estreia que completou 25 anos, alguém duvida que os caras não agradariam? Vitória fácil dos donos da casa e com direito à participação especialíssima da pequena Alice na bateria.

Confira as fotos da primeira noite do Porão do Rock [créditos: Coletivo N3RVO]:

 

Hoje vamos cantar em homenagem aos jovens negros assassinados“, proclama Criolo

No sábado (26) saíram de cena as camisas pretas e entram outras cores. Sem perder a postura de um festival de rock, a segunda noite mostrou a beleza da diversidade em sua máxima potência. “Rock não se limita à música, é atitude”, disse os pernambucanos da Academia da Berlinda, grata surpresa da escalação deste ano, e que brindou o público com suas influências nordestina e afro-caribenha. Os cariocas da banda Canto Cego mostraram seu rock mais poético que se entrelaçam com a realidade das comunidades carentes. Outros nomes como Mariana Camelo, Supercombo, Rumbora e Jimmy & Rats mostraram a gama de estilos que permeia o Porão.

Mas os destaques da noite foram Rincon Sapiência, que mostrou pela primeira vez o novo single “Meu Ritmo”, amostra do aguardado segundo álbum “Mundo Manicongo”; Marcelo Falcão, agora em carreira solo, que mostrou as músicas de seu álbum “Viver (mais leve que o ar)” e alguns sucessos d’O Rappa em novos arranjos. Citações sobre as queimadas na Amazônia e o vazamento de óleo nas praias do Nordeste apareciam a todo tempo nos telões e no discurso do cantor; e Criolo, que fez o show mais disputado do evento. Diante de 10 mil pessoas, o rapper criticou os altos índices de mortalidade da população preta no Brasil e pediu mais respeito aos professores. E claro que na capital federal, a famosa dancinha debochada enquanto a plateia canta “Ei, Bolsonaro. Vai tomar no c*” em cima de um loop de bateria ganha mais sentido.

Confira as fotos da segunda noite do Porão do Rock [créditos: Coletivo N3RVO]:

 

Passado e presente ratificam o Porão do Rock como um festival plural

Mesmo com perfis diferentes, o comportamento do público em ambos os dias foi digno de nota. Não era difícil encontrar grupos de amigos e familiares, de gerações diferentes, curtindo juntos o festival. Se na primeira noite chamou atenção a quantidade de crianças acompanhadas dos pais, na segunda o número de pessoas com necessidades especiais foi maior. E o evento contou com boa infraestrutura necessária para garantir o conforto desta parcela do público, desde cabines para cadeirantes nos banheiros químicos a cardápio em braile.

“Há necessidade de inclusão porque existe a exclusão. E essa exclusão, muitas vezes, vem do próprio cadeirante, que deixa de participar de algo por achar que não será recebido adequadamente. É com certeza uma porta de entrada para outros festivais voltarem sua atenção para as pessoas com necessidades especiais”, avalia Fernando Pires, cadeirante desde 2013, quando o carro que o trazia de volta de uma competição de surfe capotou, o deixando tetraplégico.

A história do festival está documentada na biografia “Histórias do Porão” (2018), escrita pelo jornalista Pedro de Luna, e com depoimentos de quem participou efetivamente nessas duas décadas. No livro, além de um riquíssimo acervo de fotos, há casos curiosos sobre as apresentações iniciais dos Raimundos, a vinda do Muse, a volta da Plebe Rude com todos os integrantes após dez anos, bem como o primeiro show da Legião Urbana após a morte de Renato Russo, com uma rosa branca no centro do palco, representando o vocalista. Vendido por R$ 50 na loja oficial do festival, o item aparecia ao lado de camisas, pôsteres, copos e outros itens de colecionador.

Duas décadas depois, o festival segue firme em seu propósito de dar voz, principalmente, às bandas de Brasília. Ainda que o momento não seja dos mais prolíficos para cena rock, historicamente a capital federal nunca deixou de revelar grandes nomes. “A gente faz seletivas ao vivo desde 2004. A gente tem uma curadoria, faz uma triagem, e todo ano temos mais bandas com uma sonoridade ‘porrada’ do que ‘não-porrada’. O hardcore e o metal aqui são muito fortes. É o que justifica dedicarmos uma noite inteira ao estilo”, justifica Gustavo Sá. Se o rock é atitude, o Porão do Rock segue no front e resiste bravamente.

* O repórter Daiv Santos viajou a convite da organização do festival Porão do Rock.

Destaques

Copyright © 2006-2024 POPline Produções Artísticas & Comunicações LTDA.

Sair da versão mobile