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POPline entrevista: Urias decodifica a própria mente em novo álbum, “HER MIND”

Foto: YouTube

Um estudo realizado na Universidade de Liége, na Bélgica, contribuiu para a criação do segundo álbum de estúdio de Urias, intitulado “HER MIND“, que foi lançado por completo em todas as plataformas de áudio nesta quinta-feira (8). Cansada de ser abordada constantemente em relação ao seu corpo tanto no aspecto social quanto biológico, a cantora apresenta músicas que exploram sua forma de pensar e incorporam sonoridades globais, sem perder a essência brasileira.

Foto: Divulgação (joaoarraes)

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O estudo liderado pela cientista Julie Baker trouxe evidências de que o cérebro de pessoas trans têm atividades semelhantes às pessoas cisgêneros. A pesquisa contou com exames que mediram as microestruturas cerebrais, através da técnica de imageamento tensor de difusão. O resultado observou que meninos que se dizem transgêneros tem a mesma atividade cerebral dos meninos cisgêneros, o mesmo aconteceu com meninas.

As imagens produzidas pela pesquisa serviram de inspiração estética para o projeto e embasaram algumas das canções que refletem o poder e a inteligência da artista. Ela reafirma sua essência por meio de reflexões sobre feminilidade, transsexualidade, natureza, ciência e religiosidade. Urias mescla beats arrebatadores com influências da música eletrônica, que variam do trance ao dubstep, além de elementos do hip hop dos anos 1990 e ritmos latinos.

HER MIND” foi produzido por Maffalda, parceiro de Urias desde o seu primeiro trabalho, junto com o time da Brabo Music. Além da cantora, nomes como Rodrigo Gorky, Zebu, Number Teddie e Davi Sabbag aparecem creditados no projeto.

OUÇA: 

Em entrevista ao POPline, Urias explicou o conceito do álbum e abordou questões relacionadas à religiosidade e aos desafios enfrentados pela comunidade LGBTQIAP+.

Confira:

Queria começar falando sobre o seu último show da Mamba Negra. Desde que você começou a lançar os EPs do “Her Mind”, eu falei “ela tem que lançar isso aqui na Mamba”. Como foi essa experiência para você e como surgiu o convite?

Eu já conhecia os artistas que são muito envolvidos, né com a Mamba. Eles me chamaram. Eu tentei pensar num show que desse certo com festival. A gente trouxe algumas coisas só para o show, uma abertura só para o show, alguns interlúdios para não deixar essa vibe cair, mas foi muito bom. Foi tudo! O povo estava muito envolvido com o show, foi muito bom.

Falando sobre o disco completo e das novas músicas que foram lançadas nessa última etapa, eu senti uma vibe latino-americana, porque que você escolheu essas músicas para a parte final do disco? Qual foi o seu critério?

Olha, o meu intuito era deixar as mais tranquilas para o final, mas acabou que quando não teve tranquila, né? (risos). Elas foram ficando muito pra cima, mas acho que é mais a sonoridade mesmo. Quando eu digo tranquila, é mais uma sonoridade que ela é mais identificavel, sabe? “Cuntelectual“, por exemplo, que tem uma parte toda feeling herself que eu quis meio que trazer. No fim das separações, foram as que mais me chamaram atenção para mensagem que eu quero passar no álbum, foram as que, para mim, serviram como o ponto final do assunto. “Ó, estou falando disso”, “concluindo o que eu estava falando”, entendeu? Acho que foi nesse lugar. Principalmente de letra também, pensando nas letras das músicas como quais concluíam o tema. Foi esse critério que eu usei.

Em “Cuntelectual“, tem um sample de funk que eu achava que fosse o MC Pimbaue

Acho que é uma menina que fala, é a voz de uma menina. Foi ideia do Maffalda colocar esse sample, disse para ele que eu queria um sample brasileiro, em português, que unisse nações (risos). Mas eu queria um sample em português para a galera ficar “pô, essa é aquela música e tal”, porque, por mais que eu esteja fazendo músicas em outras línguas, eu quero que o meu público brasileiro ouça se identifique e curta também. E que fosse fácil de identificar, mas a ideia do tempo foi do Maffalda. Eu cheguei com um tema para música e ele falou: “ah, eu tenho esse sample aqui, você consegue escrever em cima dessa música?”. E eu falei para ele, “ah, você podia deixar a música mais cunt, sabe? Uma coisa mais feminina” e ele botou aquele saxofone no meio. Essa é a minha favorita do álbum.

Esse álbum é todo baseado em uma pesquisa que você já tinha citado para mim em uma entrevista anterior. Você disse, na época, que falaria melhor sobre essa pesquisa na última fase da divulgação do álbum. Quando e como foi que você teve acesso a essa pesquisa? 

Foi em março do ano passado. Eu estava pensando no que eu ia escrever sobre, tinha dois meses que eu tinha lançado o ‘Fúria’ e tinha dado muitas entrevistas e, na maioria delas, eu era direcionada a falar do meu corpo. Tanto do meu corpo biológico, mas também do meu corpo político, do meu corpo social, sempre me colocando nesse lugar, como se fosse meu dever falar sobre isso. Não que deixe de ser um dever. Eu parei para pensar sobre isso e refleti muito. Eu estava respondendo muito as mesmas perguntas toda hora, perguntas que têm sido feitas há anos para outras pessoas como eu também. Então eu parei para pensar [e conclui]: eu não quero mais falar do meu corpo assim, não nesse lugar, só quando eu realmente quiser falar. Aí eu pensei “no meu próximo trabalho, como que eu vou falar de alguma coisa sem também negar a minha identidade?”, porque eu também não queria negar minha identidade, não é assim que funciona. E ai tive a ideia de falar da minha mente e eu comecei a pensar muito sobre isso. E sabe aquela coisa do algoritmo, que parece que tá lendo o nosso pensamento? Então, me veio essa pesquisa no Tik Tok. Uma pessoa do Tik Tok – eu não lembro quem era o tik toker, se vive de Tik Tok, eu não sei dizer, me desculpe -, mas era uma menina e ela falava muito sobre essa pesquisa e tals. Eu fui clicando nos links e fui lendo, fui entendendo. É uma pesquisa de uma universidade da Bélgica que uma mulher fez em crianças e pré-adolescentes trans, que estão no processo de pré-hormonização, decidindo sobre começar um tratamento hormonal para seguir com a sua transexualidade. Nessa pesquisa, ela compara o cérebro dessas crianças e pré-adolescentes com o cérebro de crianças e pré-adolescentes cisgêneras e encontra várias similaridades, várias coincidências. Ela usa ondas eletromagnéticas e meio que compara e acha mais semelhanças do que diferenças em cérebros de crianças meninas cis e meninas trans, por exemplo. Então, é meio que como se o cérebro das duas estivesse mandando a mesma mensagem para o corpo, sabe? E isso ficou muito na minha cabeça. E aí, lendo muito, eu parei para pensar e falar “poxa, querendo ou não, eu sou biologicamente mulher então”. Então, a partir disso, fui vendo as coisas da pesquisas. E aí isso também me ajudou muito nas escolhas estéticas, de coisas do cérebros, das cores do começo, de serem cores vistas em ressonância, e todo todo esse rolê. E de poder falar da minha mente, citar o corpo quando eu quisesse, entendeu? Isso era tipo assim, era nesse lugar. E sempre trazer pro natural, para o biológico, porque a gente é colocada num lugar, até social, de que a gente tá biologicamente errada, de que a gente tem doenças, de que a gente é uma doença nesse sentido de psicológico mesmo. “Nossa, é uma anomalia…” E eu queria falar que eu só faço parte da natureza mesmo. Isso é biológico, faz parte da natureza nesse sentido de que, se a gente não tivesse esse formato de sociedade, nós estaríamos do mesmo jeito, sendo do jeito que a gente é. Se a gente tivesse solta, no meio do mato, por exemplo. Foi meio que nesse lugar que essa pesquisa colaborou e muito para esse álbum. E, nessa última parte, eu também falo muito sobre isso assim a música que terminou álbum é meio que sobre trazer para o natural no sentido. Até meio que religioso da coisa, sabe?

De alguma forma esse respaldo científico era uma coisa em algum lugar te incomodava? Você buscava isso? Eu sei, por exemplo, que do lado reacionário da coisa, o argumento biológico é bastante usado, então imagino que isso de certa forma te impacte.

Esse argumento científico meio que me dá um outro embasamento para poder jogar de volta. Sendo sincera com você, a cisgêneridade sempre vai achar uma maneira de nos colocar como não natural. E sempre que a gente conquistar alguma coisa, eles vão inventar mais um degrau. Sejam modificações corporais e etc, mas quando a gente chega lá no alto, eles já jogam [um argumento] “ah, mas o cromossomo…”, sabe? A pessoa nunca prestou atenção na aula de biologia na vida, mas a pessoa me joga um cromossomo. A pessoa é cristã e me manda um cromossomo, o Adão e Eva lá e ela falando de cromossomo (risos). Mas o que mais me incomodava no geral era esse lugar que colocam a gente de não natural, no sentido de que transexualidade não é natural e é uma desordem que acontece dentro da gente, não é nesse lugar de desordem. A desordem está fora da gente, na verdade, mas dentro da gente não é esse lugar de desordem. Eu queria passar essa mensagem de fazemos parte da natureza biologicamente falando. Na última fase na última faixa do álbum, “Her Mind”, eu falo disso e trago até para o religioso no sentido de tentar explicar para as pessoas que eu sou tão natural que “I’m her image and her likeness“, tipo, “sou a imagem e semelhança de Deus”.

Falando em imaginário religioso, qual é a sua relação com a religiosidade? Você tem algum tipo de de relação com o espiritual?

Sim, eu tenho. Comecei no ano passado a me inserir no candomblé, porque eu acho que é religião que mais me abraça enquanto pessoa, raça e ancestralidade. Enquanto pessoa preta, eu só consigo me conectar com a minha ancestralidade, devido a história, através das religiões de matriz africana. É um negócio que não dá para fugir, meu filho (risos). Mas tenho me conectado muito mais a esse lado da natureza também, porque é uma religião que entende os sinais que a natureza te dá para você conseguir seguir o seu caminho. Eu sou nova na religião ainda, estou me inserindo, mas te digo com toda certeza que eu achei o meu lugar espiritualmente falando.

Em uma das faixas, você fala sobre matar uma antiga versão para dar lugar ao novo. Qual é a versão que você está deixando de lado e quem é essa nova pessoa? 

Depois que eu pesquisei sobre tudo isso, eu comecei a ter menos dúvidas sobre a minha existência, sobre quem eu era, sobre essas coisas. Essa é a versão que eu estou matando, a versão que tinha essas dúvidas e que agora são dúvidas que não me prendem mais. Acho que essa nova versão tomando conta é uma com mais certezas de si, sabe? Não é algo tipo “ah, ela está morta”, mas é um “me livrei daquela” . Agora serei outra eu.

Recentemente, você deu uma entrevista para a Vogue e fez uma capa linda para a revista. Na entrevista, você disse que tinha muita coisa para ser organizada dentro da comunidade LGBTQIAP+. Consegue exemplificar alguns desses problemas na organização da comunidade? 

No lugar de organização, eu posso falar algumas coisas. Eu acho que falta a gente conhecer mais a nossa história. E, quando eu falo “a gente”, eu estou falando de nós como comunidade mesmo, não que um ou outro não saiba [a história da comunidade]. Eu acho que também falta na gente esse senso de comunidade, porque, às vezes, eu critico alguma letra da sigla e aí vem uma pessoa e fala “ai, mas eu…”, mas não é você, meu anjo lindo, é a sua comunidade. Vocês não conseguem se enxergar como comunidade porque vocês não se organizam. É essa organização que eu preciso. De que se você ouviu, fora da sua bolha, de que as pessoas de tal letra da sigla é assim ou assado, você deve pegar essa informação e levar para sua bolha e falar “gente, lá de fora estão falando assim de nós, essa é a imagem que estamos passando. É essa a imagem que a gente quer passar? Não. Então, vamos nos organizar aqui para, pelo menos, daqui para fora a gente passar o que queremos e aqui dentro a gente se debate do jeito que a gente acha que é certo? Vamos nos organizar para, lá fora, eles verem a gente com mais seriedade?”. Acho que é meio que isso. É óbvio que nem tudo depende da gente. Às vezes, o mercado, a indústria e o sistema, nos colocam em bolhas que independem da gente com certeza, para muito além de um grupo. Esse ano estamos tendo o grande exemplo de que o boom do LGBT passou, porque esse mês, tipo assim, ficou nítido que foi deixado para trás. Colocaram a gente nesse lugar, a gente abraçou esse lugar, e agora a gente depende de alguém de fora se compadecer com a causa para poder contratar e fazer as coisas rodarem. É nesse lugar.

Outra coisa que eu vou falar e posso ser muito mal interpretada: acho que falta ódio na gente. Falta muito ódio daqui pra fora ainda. A gente é muito bonzinho. “Fulano cometeu tal crime”, “ah, mas ele tá aprendendo”, sabe? Tão gostoso, deixa ele aprender. Acho que falta um ódio organizado. Um ódio de escudo, não um ódio de ataque.

 

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