Quando comecei a fazer shows fora do colégio, em 1999, o Rio tinha muitos palcos independentes. Lembro bem da minha primeira apresentação pública, com venda de ingressos, no andar de cima do Farinha Pura, na Cobal do Humaitá. Fazer um show com banda no Far Up era um sonho naquele momento.
A gente lotou, o show foi bom e foi um dia antológico. Eu tinha que então desbravar a cidade para achar outros palcos para novos concertos. Não era uma tarefa fácil, mas havia bares, clubs e casas de show mais undergrounds que tinham uma programação musical semanal fixa. Fomos fazendo venda ativa, se encaixando e conseguimos algumas oportunidades legais. Numa indústria de CD físico, a nossa formação de plateia era fundamental para o crescimento da banda e os shows alimentavam esse desenvolvimento.
Quando a banda acabou, fui me arriscar solo em formatos intimistas de voz e violão. Toquei em quase todos os barzinhos e restaurantes com música ao vivo da zona sul, Barra, Circuito Lapa e Centro. Entre sambas, músicas populares, bossas e pagodes, mostrava uma ou outra música autoral e fui deixando os donos desses estabelecimentos felizes.
Mesmo me defendendo apenas com um violão, o baile rolava bonito e aos poucos fui trazendo mais músicos para o palco. Do solitário violão e voz, coloquei então um percussionista, depois um baixista e uma batera pocket e em formato trio, a gente foi crescendo. Novos palcos se abriram para o meu som, junto com algumas residências semanais.
Em pouco tempo comecei a me apresentar em lugares com mais estrutura, sobretudo de som e palco, e fui penetrando em casas que eu sonhava em tocar: Teatro da Lagoa, Mistura Fina, Cinemathéque, Conversa Afinada e até o Scala. Foram 10 anos sólidos rodando e aprendendo muito pela noite carioca.
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Quando fiz a minha primeira tour na Europa, em 2009, passei pelos mais diversos palcos e buracos de Londres, Paris, Lisboa e Amsterdam. Em 3 meses, toquei de bar em bar, pub em pub, club em club, até eu entender que ali meus pocket shows eram consumidos de maneira diferente pelo público. Além de uma oferta muito maior de palcos e oportunidades, a audiência era mais entusiasmada, talvez pelo fato de ser música brasileira. Foi então que decidi que voltaria no ano seguinte para morar em Londres, com meu violão.
Comecei o ano de 2010 me mudando pra Europa, sabendo que precisava fazer um ano inteiro de shows consistentes para sobreviver. Logo, entendi que Londres respirava cultura e a população tinha acesso a tudo. Naquela época, diferente do Brasil, a cultura não era artigo de luxo e a música sempre esteve instalada na formação da educação dos jovens, desde o início até o fim do ensino médio.
Eram muitos palcos, muitos eventos, festivais, bares, pubs, música ao vivo em tudo que era lugar. Se eu quisesse assistir um show por dia, tinham mais de 30 opções. Nos venues que eu procurava, pela referência de curadoria, tinham sempre alguém muito excepcional se apresentando no palco. Cantores, músicos, performers, o nível era sempre muito alto. Aquilo me impressionava demais.
Depois, descobri as jam sessions, sessões semanais de jazz e funk-soul improvisadas em ambientes intimistas, com todo mundo tocando muito e um público totalmente envolvido. Logo, minha agenda foi enchendo e fui descobrindo os melhores locais para apresentar a Música Brasileira.
Naquela época, haviam 300 mil brasileiros morando em Londres e eles eram sempre maioria nos meus shows. Comecei a achar minhas residências, meus pagodes, minhas jams até rodar por festivais pela Europa. Da Escócia ao Chipre, me apresentei solo, e dentro de projetos específicos, em festivais que nunca imaginei tocar. Daqueles tipo Glastonbury, que você fica três dias acampado com chuva e lama, comendo pão com ovo de manhã e almoçando na hora que der. As atrações vinham do mundo todo e tinham palcos de World Music, novos artistas, eletrônicos, artistas maiores e uma infinidade de diversidade que era bonito de se ver.
Em um desses festivais, fui headliner no palco Latino e anunciado como Roger Lampreia. Nunca mais esqueci! Depois de 6 meses em Londres, conhecendo muita gente e já fazendo finais de semana pela Inglaterra, França, Portugal, Espanha, Escócia e Holanda, comecei a pensar em como levaria a dinâmica das jam sessions e dos eventos que apoiavam novos artistas e davam visibilidade para os independentes, para o Rio.
Segui fazendo meu Baile Brasil por lá, até que numa residência semanal no Soho Londrino, no centenário Jazz After Dark, conheci Amy Winehouse, que tocou e cantou comigo. Eu só pensava: “Isso aqui é a esquina do mundo e tem música em todo lugar!”.
De volta ao Brasil, anunciei um show no extinto Zozô, na Urca. Acho que o efeito Amy ajudou e tivemos um sold out rápido. Era mais um palco no Rio e eu estava extasiado com a temporada que tinha acabado de viver em Londres. Feliz com a repercussão do show e pensando nos próximos passos, recebi a ligação do Beto Landau, perguntando se eu queria fazer um bloco do Jorge Ben Jor com ele. Claro que eu queria, né?
Pré-carnaval de 2011, o Samba de Santa Clara fazia seu primeiro ensaio aberto, na Gávea. Eu e Beto comandávamos uma roda de samba com repertório vasto, divertido, pra animar a festa. O Santa Clara era um evento proprietário, sucesso no verão carioca com um carnaval à espera. Deu tão certo que durou quase 5 anos, com agenda cheia pelo Brasil, nas principais capitais.
A gente se apresentava em eventos ou eventos proprietários com produtores locais. Não eram palcos fixos, teatros ou lugares feitos para fazer shows. Vivíamos angustiados porque queríamos colocar nossas composições na rua, mas estávamos presos ao ecossistema de eventos, do entretenimento e da venda de bar. A ideia de replicar aquela jam session londrina no Rio e ajudar novos artistas assombrava meus pensamentos com recorrência.
Foi aí que resolvi então criar o Live Sessions, em 2015. A ideia era exatamente a mesma do que vi e vivi lá fora. Convidar novos artistas, fomentar a cena independente, promover encontros e gerar negócios. Mal sabia eu, que aquilo era o embrião do Soho Sessions.
Numa temporada de 3 meses, fazíamos o evento toda terça-feira, no Leblon, e muitos artistas — grandes, médios e pequenos — deram suas canjas. Eu estava ali de mestre de cerimônias, dono, cantor, criando um novo palco para cidade, conectando pessoas e oferecendo música. Assim como qualquer projeto independente de música que se faz no Rio ou no Brasil, a conta não fechava e tivemos que parar.
A cultura VIP dos cariocas e a falta de prestígio do próprio público, impossibilitaram a viabilidade financeira do projeto. Todo mundo amava, achava diferente, mas ninguém queria pagar. Em paralelo a isso, várias casas foram fechando pela cidade. Eu perdi as contas de quantas eu vi abrir e fechar ao longo desses últimos 20 anos na cidade do Rio de Janeiro. Enquanto São Paulo projetava novos espaços, o Rio ia se enfraquecendo e a música ao vivo e seus espaços oficiais foram desaparecendo. Veio a pandemia.
Os 3 anos de portões fechados machucaram muito a indústria de live entertainment, eventos e shows ao vivo. Já não bastasse o ódio e a falta de apoio do Governo (daquela época) com a cultura, o país sofreu as consequências de uma pandemia severa e o mercado entrou em colapso. Muitos profissionais passando necessidades, alguns mudando de rumos e empregos e outros se reinventando. Foi um caos e uma grande ferida para uma indústria que foi a primeira a fechar e a última a abrir.
Com a chegada das vacinas, a esperança se restabeleceu e o setor começou a apostar na demanda reprimida do público e também num futuro promissor. O fato é que muita gente foi salva pela cultura durante a pandemia, os serviços de streaming cresceram e a cultura passou a ter um papel mais relevante no Brasil, sobretudo com o novo governo e as novas leis e incentivos.
Hoje, o mercado está aquecido e ativo. A quantidade de festivais, shows e eventos no Brasil nos últimos 18 meses é assustadora. Novos palcos, projetos e espaços vem abrindo portas para novos artistas, novas tribos e novos segmentos e seus nichos. O público, que estava sedento por música e diversão, abraçou a pauta e grandes festivais surgiram e novas iniciativas apareceram.
Muitos projetos se tornaram protagonistas no desenvolvimento da indústria musical ao vivo, permitindo maior acessibilidade ao público, assim como oportunidades para novos artistas e seus trabalhos. Tenho visto inúmeros projetos com o intuito de fomentar, ajudar e celebrar a cultura independente. Não só projetos menores, mas também palcos de festivais destinados a novos artistas. Esse movimento está numa crescente saudável, pois presta um serviço importante para o mercado e executa um papel crucial para a manutenção da renovação dos artistas e seus movimentos.
O Soho Sessions, projeto que faço parte, por exemplo, tem como propósito abraçar novos artistas e fomentar a cena musical independente de forma independente e apostando no novo. Além disso, o evento proporciona um ponto de encontro, com possibilidades de networking, negócios e relacionamento, num verdadeiro hub multi-cultural de música. Essa mistura enaltece a cena independente, gera valor para o movimento e fortalece esses novos talentos.
Outros projetos vêm se destacando com o mesmo propósito e objetivo. Iniciativas por exemplo como o Sofar Sounds no Rio e São Paulo, Som Na Lata e Ecoando no Rio, palcos como o do Tranquilo São Paulo e Bona Casa de Música, em São Paulo, e Manouche, Audio Rebel e Bosque no Rio, vem dando espaço para novos artistas e seus shows. Todos esses palcos possibilitam que novas caras apareçam, dando oportunidades para novas carreiras. E, o mais importante, essa oxigenação de novos artistas e palcos, oferece ao mercado um potencial poderoso de crescimento, apostando no artista de hoje que pode ser relevante e ter sucesso amanhã.
O crescimento da música independente no mundo já é significante para a indústria fonográfica. Com a facilidade do acesso no digital e a democratização da produção musical, novos artistas vêm se revelando e isso sempre será positivo para a indústria como um todo.
O desdobramento desse crescimento reflete automaticamente e naturalmente nas experiências ao vivo, trazendo mais possibilidades, oportunidades e espaços para esses novos artistas. Existe uma audiência qualificada e curiosa querendo ver, ouvir e descobrir o novo. Com essa tendência, teremos cada vez mais palcos independentes com experiências orgânicas para atender esse público. E assim, novos movimentos, novos gêneros, novos artistas, novas canções e novas histórias terão seus espaços para florescer, brilhar e acontecer.
Alimentar a cultura e promover essas conexões é o que faz nossa indústria ter engrenagem para crescer, se desenvolver e prosperar diante de um mercado que um dia foi tomado e definido por poucas pessoas e instituições, que decidiam o que era bom e o que seria sucesso.
A democratização da música é de fato o melhor caminho para se ter um mercado de criadores livres, autênticos e verdadeiros, levando suas histórias para as pessoas. E são essas histórias, melodias e ritmos que fazem a música cumprir seus 3 principais papéis: emocionar, divertir e curar. Viva a música, os artistas e os palcos independentes!
Que o Brasil possa ter fôlego para colocar a cultura na prioridade de suas pautas, que os novos artistas tenham espaço para se expressar e que o poder de fogo da cena independente seja uma arma poderosa para a inclusão. Tendo também um papel social fundamental no desenvolvimento da sociedade, através da música e da arte.
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