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Opinião: A farra acabou. E o dinheiro?

Artigo de opinião assinado por Igor Bonatto, para o POPline.Biz é Mundo da Música

Foto: Bob Price/Pexels

O que a gente mais ouve falar por aí é como tá tudo muito caro. Inflação já é uma velha conhecida do brasileiro e apenas uma peça de algo muito maior que está acontecendo na economia global. Na verdade, o mundo passa por uma mudança de ciclo e isso afeta nossas vidas, nossas finanças e até mesmo o mercado da música.

Foto: Pierre Rosa/Pixabay

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Estamos vivendo a consequência do que aconteceu nos últimos 13 anos. Depois da Crise Financeira Global de 2007-2008, o mundo passou por um dos períodos mais agressivos de crescimento da história. Bull run, como se diz no mercado de capitais. Tudo subiu.

Ações, commodities, imóveis, consumo… tudo. Veja só, como exemplo, um importante indicador do mercado de ações, o S&P 500, subiu 525% entre 2009 e 2022. Fazendo uma conta básica, mil reais aplicado em um fundo que espelha este indicador teria virado mais de cinco mil reais sem você fazer nada. Nesse mesmo período, Bitcoin sequer existia e se tornou um mercado de $1,27 trilhão. Empresas cresceram absurdamente: as ações da Tesla cresceram 31.275%, Netflix subiu 69.628% e Amazon, 176.172%.

Nestes períodos de bonança, nada parece falhar. A injeção de dinheiro não tem fim, crédito escorre pelas torneiras e a percepção coletiva é gradualmente distorcida da realidade. Não estou afirmando que tudo não passa de uma ilusão. Pelo contrário. São nestes momentos que negócios revolucionários são viabilizados. Ao mesmo tempo, um volume colossal de recursos são despejados em sonhos e promessas que não se cumprem e, um dia, a conta chega.

Quer saber? A conta chegou.

O que é um bull market?

Nos jargões do mercado financeiro, o crescimento é representado pelo touro (”bull”), pois ele ataca com seus chifres de baixo para cima. Já a queda é associada ao urso (“bear”), uma vez que, com suas garras, ataca de cima para baixo. Por isso, quando o mercado cresce, fala-se em bull market. Quando cai, bear market.

Bull markets surgem em decorrência de medidas econômicas e políticas em resposta a alguma situação de crise econômica. Injeção de dinheiro, corte de juros, redução de impostos, incentivos e por aí vai. A combinação de tudo isso faz com que as empresas, pessoas e governos tomem mais recursos emprestados, invistam mais, derrubando desemprego, estimulando o consumo e, no final, a economia como um todo cresce.

Por definição, um bull market é aquele que, ao longo de um dado período, o mercado não cai mais do que 20% em relação ao seu pico. Ou seja, mesmo com alguma volatilidade, na média, está sempre em alta. Observe o exemplo abaixo:

Fonte: Google Finance

Veja que neste gráfico que se estende por quase quatro décadas observamos 3 bull markets. Primeiro, nos anos 90. Um período longo e intenso de crescimento que acabou na bolha de 2000, quando o mercado retraiu 49% em menos de 2 anos. Em seguida, o começo dos anos 2000 passou por um período de crescimento moderado, mas colapsou com uma queda brusca de 57% entre o final de 2007 e início de 2009. E assim o mundo entrou neste mais recente ciclo, que foi um dos mais impressionantes da era moderna.

Ciclo de 2009-2020

Para sair da Crise Financeira Global, que começou em 2007, e colapsou o sistema financeiro do mundo inteiro — ao ponto de quebrar países — as taxas de juros caíram para mínimas históricas e os bancos centrais afrouxaram as políticas monetárias. O objetivo era estimular a economia para viabilizar novos negócios, gerar empregos, investir em infraestrutura e, assim, tirar o mundo do buraco. Liderado pelos EUA, que salvaram bancos e impediram um colapso ainda pior, o movimento se alastrou por todos os continentes. Com tanto dinheiro disponível e com taxas básicas tão baixas, para se fazer dinheiro era preciso correr algum risco. Ou seja, investir em algo que estimulasse a produtividade e o progresso ao invés de deixar parado em algum título do governo, por exemplo.

O resultado foi uma sequência de quase 13 anos de forte crescimento. O mais longo já registrado.

Entra a pandemia da Covid-19. Uma faísca que aceleraria grandes transformações.

Covid, guerra e inflação

Bolsas mundo afora vinham batendo máximas históricas dia após dia. Até que, sem qualquer aviso, em março de 2020 o mundo entrou em lockdown como reação à até então desconhecida pandemia. A incerteza e o medo predominaram e as principais bolsas do mundo despencaram até 40% entre fevereiro e março daquele ano.

Isso marcaria (e alguns assim o consideram) o fim do ciclo de crescimento que começou em 2009. Mas algo diferente aconteceu.

Com políticas públicas forçando as pessoas a ficarem trancadas em casa, o desemprego explodiu, empresas fecharam, fábricas pararam e o tal novo normal tomou conta. O povo, com medo do que viria, parou de gastar para preservar suas reservas.

Para evitar um grave colapso sistêmico e econômico, governos e bancos centrais precisaram intervir com 1) injeção de dinheiro (muito, muito, muito dinheiro); 2) diminuição ainda maior na taxa de juros; 3) distribuição de auxílio financeiro aos mais vulneráveis.

Isso possibilitou não apenas que a economia global não colapsasse e que o impacto na população mais pobre fosse aliviado, como também fez com que a produtividade e nível de consumo crescessem em uma velocidade extraordinária. Em menos de meio ano, os principais indicadores voltaram aos níveis pré-pandemia.

Só que não parou por aí.

Pouco mais de um ano após o início da pandemia, as principais bolsas chegaram a mais que dobrar. O que estava acontecendo?

Foi injetado tanto, mas tanto dinheiro no mundo, sobretudo através dos EUA, que colocaram mais de $5.2 trilhões na economia* que o bull market atropelou a queda do início da pandemia. As pessoas seguiram consumindo e o mundo, produzindo. Mas com paralizações recorrentes no setor industrial, mudanças de paradigmas em escala (viagens aéreas e trabalho remoto, por exemplo) e, acredite, dinheiro demais no mundo, a oferta não seguiu o mesmo ritmo da demanda.

Como aprendemos no beabá das finanças, se a demanda é maior do que a oferta, ou seja, mais interessados em “comprar algo” do que a disponibilidade desse “algo”, só existe um caminho: inflação. Inflação, de maneira super resumida, é quando o preço de produtos e serviços sobe e o mesmo dinheiro passa a valer menos. A melhor forma de aprender sobre inflação é abastecer seu carro ou entrar num super mercado e comparar com o que você gastava 1 ou 2 anos atrás.

Só que líderes — presidentes, ministros da economia, presidentes de bancos centrais — falavam que a inflação era passageira. De uns meses para cá, o mundo percebeu que não é bem assim e que o problema é sério, global e persistente. Vários países já registravam níveis elevados de inflação quando surgiu uma nova bomba, literalmente, na economia: a invasão da Rússia na Ucrânia.

Por um motivo ou por outro, o conflito trouxe impacto direto no aumento expressivo dos preços de itens como, trigo, gás natural e petróleo. Tensão e incerteza sempre contribuem para agitar ainda mais os mercados e é exatamente o que uma guerra traz. Com isso, a inflação piorou ainda mais e acentuou a entrada do mundo em um novo ciclo.

O fim da farra

Para conter a inflação, os bancos centrais entram em cena e são decisivos na definição do futuro da economia. Uma das estratégias mais evidentes é reduzir o poder de compra das empresas e das pessoas tirando dinheiro delas. Não de maneira literal, mas aumentando a taxa de juros — tornando a disponibilidade de crédito mais escassa e, por consequência, diminuindo o gasto. Assim, gradualmente, oferta e demanda voltam a ter uma maior alinhamento e a inflação cai. Só que isso gera diversos danos colaterais (que não vou entrar em detalhes), como a queda do valor presente de ativos. Na prática, veja só:

Enquanto escrevo este texto, em junho de 2022, as ações do Spotify caíram 72.8% desde fev/2021; Robinhood caiu 86.2% desde ago/2021; Nubank caiu 70.7% desde dez/2021; Coinbase caiu 85.1% desde nov/2021; Meliuz caiu 90.2% desde jul/2021; Netflix caiu 75.2% desde out/2021; Já entendeu, né? O índice da Nasdaq, onde boa parte das grandes empresas de tecnologia estão sediadas, já caiu mais de 30% desde nov/2021. Outros indicadores que tendem a misturar empresas mais tradicionais com empresas de tecnologia, incluindo o índice da bolsa brasileira (Ibovespa) vem caindo entre 15—25% neste mesmo período. (Todos os dados foram obtidos através do Google Finance).

Isso significa que todos estes negócios estão falindo ou indo ladeira abaixo? Longe disso. A receita da Snap cresceu quase 40% no último ano enquanto suas ações caíram 85% no mesmo período. Essas quedas significam simplesmente o mercado colocando os pés no chão. Trazendo os números, que até então eram baseados em promessas, para o presente e todo o contexto atual. Não é que as empresas estão falindo. O mundo que acordou de um faz-de-conta.

Semelhanças entre o mercado atual e a bolha da era dot-com, que estourou em 2000, aumentaram. E o que explode lá na ponta — empresas de capital aberto — se reflete na outra ponta — startups tentando levantar dinheiro. Juros mais altos, investidores mais cautelosos e menos liquidez tornam o acesso a capital mais difícil por um tempo. Com acesso mais limitado a recursos, o ciclo em que tudo sobe se encerra e a farra acaba.

E o que a música tem a ver com tudo isso?

Tirando o preço das ações das empresas públicas do setor da música, que só deveria lhe preocupar se for acionista e vem observando uma queda de até 70%, existem consequências mais dramáticas para o setor como um todo em vista.

Como sócio de uma empresa que se alavanca com capital externo, tenho observado alguns padrões que estão desenhando o futuro próximo da indústria. Parte deles decorrentes dos fatores macroeconômicos que descrevo acima e que já estão em curso.

Lembra quando eu disse que, quando a taxa básica de juros está baixa, investidores precisam encontrar novas oportunidades para gerar retornos mais interessantes enquanto negócios aproveitam para alavancar sua operações? No mercado da música, isso não é diferente. Não é à toa que a explosão na compra de catálogos se deu justamente em um momento em que os juros batiam mínimas históricas, entre 2020 e 2021.

Investidores passaram a ver catálogos como um ativo descorrelacionado com o mercado financeiro tradicional, relativamente seguro e com retornos satisfatórios. Fundos e empresas especializadas se organizaram e conseguiram levantar bilhões de dólares.

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Nos EUA, os juros estavam perto de zero. No Brasil, chegou a 2%. Enquanto investimentos em catálogos prometiam retornos superiores a 12%. Era um risco interessante para alocar parte de seu capital. No entanto, o mundo mudou e os juros subiram. Hoje, diversos títulos de renda fixa seguros rendem facilmente mais do que 12%. CDBs estão oferecendo retornos de 15-18% sem riscos elevados.

Investidores, institucionais ou de varejo, passam a comparar as oportunidades com mais atenção. Para tomarem a decisão de aportarem recursos em investimentos alternativos, como ativos musicais, o retorno precisa ser maior para compensar o risco percebido em relação a outros ativos tradicionais.

Só que um retorno maior só é possível se alcançar de duas formas: (a) aumentando a taxa de desconto, o que prejudica diretamente quem está vendendo o catálogo; (b) com gestão ativa para melhorar a performance, o que é incerto e considerado um risco.

Mas a compra de catálogos não é a única frente afetada. O desenvolvimento de carreiras e novos negócios também se beneficiam de alavancagem financeira. Algumas das maiores empresas do setor realizaram grandes rodadas de captação ou abriram o capital (o que também funciona para levantar investimentos) nesse período. Esse dinheiro todo é empregado na expansão dos negócios, incluindo alocação direta na produção de novos ativos e carreiras.

Muitos dos fundos ativos captaram recursos nos últimos 2 anos e ainda deve existir uma boa liquidez. As grandes gravadoras, distribuidoras e editoras seguem gerando muito caixa na onda do crescimento das plataformas digitais e não devem sofrer maiores consequências neste período de transição.

Novas iniciativas e alavancagem de empresas que geram menos caixa serão as mais afetadas. Sem contar as empresas relacionadas à criptoeconomia, mas isso é assunto para outro texto. A dificuldade de captação nos próximos 18-24 meses pode desacelerar a inovação e a proliferação de novos fundos. No entanto, negócios sólidos e geradores de caixa seguirão firmes e devem se consolidar ainda mais, tanto através de M&A quanto do aumento de market share.

O problema está no cenário da recessão em vista se prolongar.

E agora?

Toda crise gera a esperança de que novos tempos virão. E momentos melhores sempre chegam, realmente. Grandes consequências trazem aprendizado, enquanto o tempo traz o esquecimento. E a história se repete. Altos e baixos sempre existiram e sempre existirão. No final, sempre haverão oportunidades de prosperar e de fazer diferente. E sempre existe espaço para a ganância e a irracionalidade estragarem com tudo. É importante ter ciência de que o momento de mundo é outro e também de que ele não é para sempre.

O mercado da música segue promissor e pode atravessar por essa fase sem grandes prejuízos. Eu digo que o maior risco para o setor é o próprio setor, mas deixo este tema para o próximo artigo.

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Igor Bonatto (@igorbonatto) é fundador da noodle (noodle.cx), o primeiro banco digital para artistas e empresas musicais. Antes, Igor fundou a produtora audiovisual Claraluz Filmes, a agência de inovação criativa THT, dirigiu e produziu filmes publicitários, videoclipes, curtas e longas.