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Opinião: Façam a revolução, que está no ar, no underground

Artigo de opinião assinado por Alexandre Ktenas, para o POPline.Biz é Mundo da Música

Alexandre Ktenas, colunista POPline.Biz é Mundo da Música
Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal

Acredite se quiser, mas houve um tempo em que não existia TikTok. Por mais absurdo que seja, não existia nem Instagram. Na verdade, os telefones nem podiam tirar fotos. Para ser mais sincero, não existiam nem mesmo aparelhos celulares nessa época. E mais incrível ainda, para gente não existia nem a própria Internet, e ninguém tinha computador na mesa de trabalho. Mas havia o TON.

Por mais sombrios e distantes que esses tempos pareçam, coisa dos tempos dos homens das cavernas, essa era longínqua não remonta nem a trinta anos atrás. Era em que um certo TON dominava as paradas de sucessos do mundo inteiro, mesmo sem ser um aplicativo de música, sem ser uma gravadora, sem ter composto nenhum hit de sucesso.

Eu tinha acabado de ser promovido de estagiário a Label Manager Internacional. Apesar do nome pomposo e com cara de função de alto executivo do Vale do Silício, a job description desse trabalho era tão somente cuidar dos lançamentos internacionais da gravadora e servir de babysitter caso algum artista internacional tomasse coragem para vir visitar os trópicos. (Acabei dando a sorte de ter que cuidar de gente bacana como Kiss, Sting, Led Zeppelin, Scorpions, Metallica entre outros, mas isso é ooooutra história que conto em outra oportunidade aqui).

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O antigo Label Manager, o gentilíssimo Renato Costa, estava de partida para outros desafios em outra gravadora, e me passava ali o be-a-bá da função. Tipo quem era quem, de que “selo” (“label” em português) era cada artista e cada executivo. Exemplo: Sting era da A&M, U2 era da Island, Stevie Wonder era da Motown, Elton John era da Mercury, e tudo isso, e muito mais, era da Polygram (hoje Universal), onde eu trabalhava.

Quando eu achei que a aula estava acabando ele parou e disse, “deixei pro final o mais importante e que vai te demandar mais tempo e cuidado”. (E eu pensei comigo mesmo, “Que artista poderia ser mais importante do que estes todos aí?”). Foi a primeira vez que ouvi falar do TON.

TON na verdade era o nome pelo qual era conhecido um certo Ton Van Den Bremer. Um ex-alto-executivo de gravadora que certo dia resolveu pedir o chapéu e partir para a carreira solo. Um típico holandês ruivo e sorridente, adorava nossa picanha e nosso chope e acima de tudo era apaixonado por futebol (mais especificamente o da seleção holandesa). Ele achava o ‘modus operandi’ das companhias de música de então erradas e resolveu repensar o modelo do negócio como um todo. Resolveu fazer uma pequena revolução.

Como toda revolução, a dele só foi possível graças ao advento de uma nova tecnologia, no caso, essa tecnologia atendia pelo nome de FAC-SIMILE, ou aparelho de FAX ,como ficou mundialmente famoso.

Quando viu que podia enfiar um pedaço de papel com um contrato assinado por um lado do telefone e que a cópia desse documento podia aparecer como que por milagre (para época) do outro lado do mundo, Ton teve seu dia de “eureka”. E criou sua própria companhia, a Ton Company, ou como logo ficou conhecida na época, ToCo.

Ton pegou sua pastinha e começou a assinar artistas, primeiro pelos países baixos, onde morava, e logo na Europa inteira. Estava começando o movimento da ‘dance music’ (que hoje chamamos de música eletrônica) e ele viu que iria começar por ali.

A ToCo era uma one-man-company, só ele e mais ninguém. O próprio ligava pros artistas, ouvia as músicas pelo telefone, assinava o contrato por FAX (lembra que não tinha email, pois não existia internet, e nem computador) e saía viajando pelo mundo inteiro mostrando seus produtos para quem quisesse ser seu distribuidor local. Ele dava preferência para quem fosse Polygram, na época, mas lembro que era EMI na Argentina, Sony no Chile e Warner na Índia, por exemplo.

Uma vez assinado o contrato de distribuição, ele inventou o mais genial método pré-internet de distribuição de masters e artes para capa, as chamadas ‘production parts’. Enquanto as grandes majors usavam caríssimos e demorados correios, ele tinha uma turma de amigos comissários da KLM que faziam os transportes em troca de almoços com os destinatários. Eu, por exemplo, levava sempre o Franz Kok, nosso comissário mascote, para comer na Oásis de São Conrado, churrascaria preferida deles.

Resolvido o método de contratação, de distribuição e de entrega de masters, Ton resolveu também o método de autorização, trocando os famigerados e demorados contratos internacionais por simples OKs rabiscados a mão e enviados por FAX.

No universo acelerado da dance music, onde os sucessos das casas noturnas envelhecem rápido, isso era gamechanging e fez rapidamente da ToCo a maior companhia do segmento no mundo com artistas como Technotronic, DJ Bobo e Ace Of Base bombados no mundo inteiro.

Mas Ton queria mais e, sem saber, inventou o que hoje as gravadoras chamam de 360º, sendo também o agente de seus contratados. E mais, ampliando o leque de artistas e segmentos. Nunca esqueço do dia que ele chegou numa de suas quatro visitas anuais ao Brasil – sim, ele dava quatro voltas ao mundo por ano, com o novo álbum do MOTORHEAD. Sim, temos METAAAL na ToCo.

Ton voou alto, construiu um super hotel numa praia paradisíaca nas Ilhas Maurício, e de lá ficava me ligando pra contar as novidades. Numa dessas ligações tivemos a ideia de fazer um festival de dance music 100% ToCo, que acabou virando um super evento na época (Rio e SP) com mais de 100.000 pessoas pulando ao vivo com os maiores artistas do Selo (Close-Up in Concert, dá um Google aí).

Lembrei de tudo isso em pleno voo pra gravar um álbum de um artista que acabamos de contratar pro Selim. Guardadas todas as proporções do planeta, tento aplicar e dividir com minha turma muitos dos ensinamentos que aquele holandês bonachão me ensinou.

Lembro de ter ganho um uísque dele numa aposta no jogo Brasil X Holanda da Copa de 94, o qual ele nunca perdoou pelo, segundo ele, “gol roubado” do Branco. E busco reproduzir na minha vida e no meu trabalho a mesma leveza e comprometimento que ele transmitia.

Acho que ter testemunhado essa revolução que ele criou, muitos anos antes de o digital destruir e reconstruir o nosso business, me ajudou a ter o modelo de negócio que tenho hoje. O digital ajudou muito, as comunicações ficaram mais fáceis e as distâncias encurtaram. Por isso, com meus guerrilheiros corajosos, todos eles brilhantes e com um futuro lindo pela frente, cúmplices da vontade de fazer acontecer e do amor pela música, vamos dando nossos pulos. Do underground pro mainstream. Querendo voar.

Quis contar aqui a história desse cara, que diferente de muitos outros mais famosos e menos corajosos, pouca gente conhece, e que me inspirou muito. Graças ao poder de desapego aos conceitos da época, e seu poder de inventar novas rotas, ele ensinou para uma geração inteira que música não tem fórmula. E mais que isso, que o negócio não tem fórmula, que o marketing do negócio não tem fórmula.

E mais que tudo, que o que é comum a tudo isso, é o talento. Talento pra fazer música e talento para fazer a música aparecer. Independente de ser um lançamento bombástico no Instagram ou uma coreografia irresistível no TikTok.

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Alexandre Ktenas trabalha com música desde sempre, nos quatro cantos desse negócio, com larga experiência na indústria fonográfica no Brasil, América Latina, Caribe e EUA. Hoje é sócio da agência de conteúdo digital Kontente e de lindos selos de música pop como o Selim. Habitante do mundo da música.