in ,

Negra Li lança o majestoso clipe de “Comando” e começa uma nova era

Foto Rodolfo Magalhães

Poucos segundos após o fim do aniversário de 46 anos de Lauryn Hill, “Comando” estreou nas plataformas de streaming, nesta quinta-feira (27/05). Assim como a cantora norte-americana, que começou sua carreira no grupo de rap e R&B Fugees, a intérprete do lançamento do dia viu seu nome (artístico) ecoar para além das fronteiras da Brasilândia, zona norte de São Paulo, com o RZO, lendário grupo de rap brasileiro originário de Pirituba, zona oeste.

Negra Li, que acaba de lançar um majestoso clipe para o single, sabe que é para toda uma geração de mulheres do rap nacional, o que Lauryn Hill foi para ela nos anos 90. A biografia das duas artistas contém semelhanças que ultrapassam o talento. Além da inspiração musical, da origem no rap e do berço religioso, em algum momento, elas enfrentaram os obstáculos da indústria da música e renovações na vida pessoal. Sabendo manobrar, Li sempre foi “das nossas”, gigantesca em personalidade, brasileira e da quebrada.

CRÉDITO RODOLFO MAGALHÃES

O vídeo dirigido por João Monteiro em uma fazenda construída pelo trabalho escravo no interior de São Paulo é a prova de que a cantora conseguiu deixar o seu legado sem abandonar o que a levou até o status de precursora de um movimento feminino dentro da música urbana. O clipe de “Comando” é uma aula de ancestralidade à la Beyoncé, mas, antes de tudo, uma produção autobiográfica sem ponto final, que olha para o futuro sem medo.

Confira:

Liliane de Carvalho, de 41 anos, parece viver o seu apogeu enquanto mantém o olhar firme e brilhante de quem sonhou com a vida de cantora aos 16 anos. Mãe orgulhosa de Sofia e Noah Malik, tem motivos de sobra para levar o jovem a sério e sabe de sua importância para a música brasileira. Na faixa, reforça o seu compromisso com o rap sem deixar de lado a sua inquietação de explorar novas sonoridades e perspectivas musicais.

Foto Rodolfo Magalhães

Para sua nova fase, Negra Li conta com a ajuda do alto escalão da produção musical nacional. Com um time artístico orquestrado por Diego Timbó (empresário de Cleo e compositor de “Modo Turbo“), compôs as faixas de sua nova era na companhia de Arthur Marques, compositor de sucessos de Luísa Sonza, IZA e Pabllo Vittar. Um encontro que, de acordo com os dois lados, deu muito certo. “Produzir o álbum novo da Li está sendo uma honra imensa! Sou muito fã das mulheres do rap e era um sonho antigo trabalhar em um projeto como este”, disse Arthur ao POPline.

O ineditismo da dupla garantiu novas narrativas para as bem traçadas letras de Marques. O novo time de colaboradores, também formado por Cinthya Ribeiro e Thin de França, não impediu que Negra Li explorasse suas raízes.

“As músicas dela marcaram vários momentos na minha vida e com certeza também influenciaram muita gente. O processo está sendo bem gostoso, ela traz temas e histórias que ainda não havia cantando, influências do afrobeat ao rock. É uma nova Li e ainda assim totalmente em sua essência, consegui ficar ainda mais fã”, disse Arthur.

Nesta semana, o POPline conversou com a cantora sobre a sua nova fase. Confira a entrevista completa:

POPline: As fotos do clipe, que eu estou vendo aqui, estão deslumbrantes. O que esse clipe tem de tão especial para você?
Negra Li: Aí…muitas coisas são especiais. Essa música é especial, ela veio num momento muito de autoconhecimento, depois dos meus 40 anos, depois de uma separação, depois de eu assinar contrato com a mynd pra um novo empresariamento. De 2019 para 2020, eu fechei um ciclo. Em 2020, comecei uma outra mulher, um outro pensamento. Essa música é sobre isso, por isso escolhi ela como a primeira, sabe? Porque ela mostra bem como eu estou chegando, esse empoderamento todo que eu consegui obter através desse autoconhecimento, com todas essas dores, esses amores, da minha vida pessoal, dessa idade da loba, tudo. Me fez ter a certeza do que eu represento não só na música, mas dentro da minha família, para os meus filhos e tal. Então a música fala sobre isso, esse comando todo, é o comando da minha própria vida, da minha trajetória e da minha carreira agora. Estou fazendo tudo do jeitinho que eu gostaria e com uma equipe maravilhosa que abraçou essa causa junto comigo.

No clipe, eu quis falar ainda mais do que na música. Já que o clipe é imagem, não tem como, uma pessoa como eu carrega, naturalmente, o fato de ser uma mulher preta, na base da pirâmide da sociedade, com todas as coisas que sofre, não tem como, já vem comigo. Junto com a música, que fala sobre empoderamento, dessa minha nova fase, dessa mulher que se descobriu, viu a importância da referência que tem musicalmente como mulher, com tudo assim. Eu aproveitei isso na música pra relatar o racismo, para relatar o sofrimento que a gente ainda passa pelo preconceito racial, por sermos ainda atingidos por conta disso.

POPline: E como ele é?
Negra Li: Foi uma ideia muito bacana que a gente teve de fazer numa fazenda, um lugar construído por escravos. Eu quis resinificar esse lugar. Como eu falei para minha equipe, é um salve ao meu passado e um brinde ao meu futuro. Eu sou grata a tudo, de onde eu vim, da minha base no hip hop. O clipe mostra um pouco disso. E aí acaba brindando o futuro, que eu já sei que é promissor, já sei que é vitorioso e essa certeza vem junto com as pessoas que eu amo que estão do meu lado, sabe? Eu sei que eu tenho pessoas, meus fãs, meus amigos, minha família…Isso me ajuda a dar mais certeza. Por isso que eu chego toda forte, imponente naquele lugar que foi do opressor e agora estávamos ali com poder que a gente tem, que a gente pode, que a gente confia, que a gente é.

Foto Rodolfo Magalhães

POPline: Você já tinha visitado um lugar assim antes?
Negra Li: Provavelmente. Mas nunca com essa consciência. Confesso pra você que quando eu entrei naquele lugar me deu um frio na barriga, principalmente quando eu vi cômodos antigos. Banheiro no porão, banheira escondida no chão, você não via. Aquilo, nossa, principalmente para quem é preto, quando se imagina naquele lugar, nunca vai conseguir se imaginar dono, porque não foi. Você vai se imaginar sofrendo, perguntando onde era o lugar do meu castigo, lugar em que eles castigavam e trabalhavam, quais eram as condições, sabe? Aí, meu, confesso que deu esse frio na barriga (suspira), mas a mensagem era tão forte, a equipe tão unida. A equipe era majoritariamente preta porque já que a música fala sobre isso e o espaço é tão menor pra gente…Lógico que tá mudando bastante e a gente tá se vendo mais na televisão, tem maquiagem pra gente, produto de cabelo pra gente, mas a gente sabe que na corrida a gente saiu atrasado. Eu, como mulher preta, por favor, né? Vamos dar oportunidades. O diretor, João, abraçou super a ideia. Apesar de não ser preto, ele fez questão que as pessoas ao redor fossem pretas. Diretor de arte, a pessoa que desenhou, o figurinista, o maquiador, as bailarinas e toda equipe. Fiz questão porque fala sobre isso, união das pessoas pretas e da mulher preta.

POPline: E a ideia de colocar Sofia, sua filha, no clipe?
Negra Li: Não tinha como, né? Falo também de legado, de brindar o futuro. Não tem como não pensar na minha filha, nos meus filhos e, principalmente, porque eu fabriquei uma mulher preta. Eu preciso prepará-la e ela já está preparada. Eu sinto que a Sofia é revolucionária. Fiz um bom caminho. Nos Stories dela, ela relata várias coisas, viu? O que a mamãe não fala, tem medo de falar…Ela fala do presidente, de LGBTQI+, ela se vê nesse lugar, lutando por essa causa. Eu acho isso maravilhoso, acho que isso tem tudo a ver com ela, não só porque ela é minha filha. Além de ser minha filha, além de achar que eu estou passando o legado pra ela, tem que ela é uma mulher preta com atitude, vontade de mudar. Esse empoderamento da música e do clipe não tinha como não ter a Sofia.

CRÉDITO RODOLFO MAGALHÃES

POPline: Você acha que ela seguirá seus passos?

Negra Li: Ela é melhor do que eu, muito melhor (risos). Eu fico boba, sério, ela tem 11 anos e, às vezes, parece que eu estou falando com uma mulher. Pelo amor de Deus, para, seja uma criança. Eu trato ela como um bebê, porque eu quero ‘calma filha’. E sim. Ela faz aula de teatro musical, estou preparando ela. Ela demonstra, né? E já que ela demonstra, tem que se preparar para caso acontecer de surgir uma oportunidade. Apesar das pessoas acharem que, por ela ser minha filha, pode ser mais fácil, acho que não é. Pode ser mais difícil porque criam uma expectativa em cima da pessoa. Não sei o que que é isso, porque da minha família só eu mesmo. Como eu conheço bem o caminho, já estou preparando ela sim. Ela dança, ela canta, atua. É maravilhosa.

POPline: E com quem você está trabalhando nessa nova fase? Como foram as sessões de estúdio?

Negra Li: A Fátima Pissarra, que é minha empresária, é uma mulher muito inteligente, muito visionária. Quando eu entrei na mynd, tinha certeza que se colocasse na mão dela, a coisa ia acontecer da forma como eu sempre sonhei. Inteligentemente, ela foi procurando por braços, ela não pode fazer tudo sozinha. Ela chamou o André Corga, que é o diretor artístico, que chamou o Timbó para ser meu produtor artístico [diretor musical], que tá cuidando de toda a manutenção da minha voz, de letra, da sonoridade, dos meus discos. Ele escolheu, sabiamente, uma equipe maravilhosa para compor comigo. Arthur Marques, a King, o Thin e o Dj Thai, do Rio, ele também fez algumas faixas. O resultado foi maravilhoso. Tá incrível, do jeito que eu…Tá melhor, na verdade. Eles me surpreenderam. Quando a gente estava criando, eu já amei. Gostei do instrumental, foi indo, a produção. Quando eles me mandaram a produção final, eu falei ‘meu deus…o que vocês fizeram’. É muito gostoso ser surpreendido assim. Então esse é o caminho, quem tá trabalhando comigo.

POPline: Eles são produtores conhecidos pelos trabalhos com artistas pop (Luísa, Pabllo, Iza). O que podemos esperar de sonoridade vindo de você, uma artista que tem origem no rap e R&B?
Negra Li: Eles vão surpreender vocês, é o que eu posso dizer. Eles tiram o melhor do artista. A gente deu match porque eu era uma referência pra eles. O timbó sempre falou: “Quando o pop não tinha (…), você estava lá. Você iniciou o pop no brasil”. Eu recebo isso deles, apesar de não achar que eu seja a principal, a primeira e tal. Nesse estilo, sim, que mistura o R&B com o rap, com uma batida mais pop eu até posso dizer que sim. Tem a Luciana Melo, que eu adorava as batidas dela, dançantes e tal.

É um sonho deles trabalhar com um produto como o meu. Era um desafio. Quando eles chegaram, eu falei vai ser um desafio porque eu já tenho uma carreira consolidada, não sou uma artista que está começando, que vai experimentar. Eles toparam esse desafio junto comigo. Eu escrevi todas as músicas junto com o Arthur e isso, pra mim, foi uma experiência única. A gente deu muito match. A King também, que é uma mulher preta, junto comigo fazendo as rimas, escrevendo. Vocês vão se surpreender porque é Negra Li de verdade, é rap, R&B com batidas que namoram com o pop, com o afrobeat. É bom falar porque os fãs estão esperando a tanto tempo. É legal tranquilizar.

POPline: o R&B segue em alta, né? O que você tem ouvido? Alguma coisa serviu de referência pra esse trabalho?

Negra Li: É tanto nome novo que eu não sei se eu vou conseguir falar todos, tá? Eu adoro a H.E.R., a sonoridade do trabalho dela, gosto bastante da SZA, da Doja Cat, gosto da Lizzo, da Cardi B, ela é maravilhosa, a voz dela é incrível. E a própria Beyoncé. Sabia que a Beyoncé nunca foi uma referência pra mim? Assim.. de voz, porque não era o meu alcance vocal, eu ia sempre mais pra Lauryn Hill, Jill Scott. Até que eu tive que fazer um show cantando repertório da Beyoncé. Eu aceitei esse desafio. Eu fui conhecer a mulher a fundo. Que ela é maravilhosa, eu já sabia, ela só não era uma referência em questão de alcance vocal, eu amava as músicas dela. Fui conhecer a mulher por trás das músicas maravilhosas, da voz maravilhosa…Virginiana como eu, né? Eu me encantei com ela. Cada vez mais a produção dela foi ficando mais raiz, ela foi se encontrando nessa coisa da Africanidade, da ancestralidade. Esse novo trabalho dela, eu engoli. Foi uma das referências, está sendo. Além de Jill Scott, Erykah Badu, Lauryn Hill, Aretha Franklin…Essas eu nunca parei de ouvir. Por mais que venham os novos, dessas fontes eu sempre vou beber. Os novos bebem dessa fonte também. Os americanos tem alcance mundial eles ditam primeiro, mas eu gosto, viu?

POPline: Quando você me falou da fazenda, trabalho escravo, e vendo as fotos lembrei do “Lemonade”…

Negra Li: Com certeza esse álbum foi uma referência. Sabe o que foi legal em “Comando”? No clipe, todo mundo estava com sede de expressar a sua arte, principalmente nesse momento em que a gente tá vivendo, de pandemia, em que todo mundo teve que ficar mais recluso, mais no seu lugar, não podia sair. Senti que estava todo mundo com sede. A Dandan que fez a coreografia, as bailarinas que dançaram, o diretor de arte. Tem dedo dele. Tem coisas no cenário, por exemplo, que ele colocou porque ele chegou de outro estado e foram as primeiras coisas que ele viu em São Paulo. E ele pode colocar. O figurinista, Leopoldo, com certeza colocou figurinos ali de coisas que ele queria dizer, que ele queria contar. Todo mundo ficou muito livre para colocar para fora tudo o que queria, da sua mensagem da sua arte. Ficou um clipe lindo, uma energia tão gostosa. Toda hora as pessoas davam um jeito de me agradecer por estarem ali. ‘Obrigada por você ter me convido, pela oportunidade de fazer esse trabalho, de relatar essa mensagem, de estar aqui’. Então, nossa, não tinha como ficar menos do que maravilhoso por causa dessa sinergia.

“Lembro que eu me perdi um pouquinho, lá pros meus 30. Fui ter bebê, casei, a gente perde um pouco aquela coisa. Mas agora voltou. Essa coisa que eu tinha de jovem, de querer revolucionar, voltou”- Negra Li.

POPline: Li o que você acha dessa nova geração? Do pessoal do trap? 

Negra Li: Ah, cara, eu gosto bastante. Eu acho eles muito assim…A cabeça dos jovens tá empreendedora. Eles são os inteligentes, eles se jogam, lançam mesmo a música e não querem muito saber se a pessoa está gostando, eles querem é dizer aquilo. Eu lembro muito de mim no começo da minha carreira. Eu era assim, não ficava pensando muito. Quero falar isso, quero delatar…Eu sinto isso neles, essa sede. Por mais que tenha mudado um pouquinho a estética, eu acho que é a mesma coisa, colocar pra fora a energia da juventude. Isso é muito importante, faz um bem pra quem é jovem. Eu lembro que, pra mim, foi muito assim. Lembro que eu me perdi um pouquinho, lá pros meus 30. Fui ter bebê, casei, a gente perde um pouco aquela coisa. Mas agora voltou. Essa coisa que eu tinha de jovem, de querer revolucionar, voltou. Confesso que eu dormi um pouquinho, eu descansei. Eu fiz toda aquela chama dos anos 90, RZO e tal e depois eu entrei no meu casulinho, na minha bolha, com minha família, meus filhos. Mas trouxe de volta aquela energia de querer mudar as coisas. Isso, para o trabalho, faz toda a diferença. Consigo ver a diferença dessas músicas, para as músicas de, por exemplo, “Tudo de Novo”, um disco que foi mais pro MPB, que eu compus super pouco.

POPline: E um novo álbum? Podemos esperar um projeto em breve? 

Negra Li: Agora, isso mudou muito, né? A gente pega o rabinho da pergunta anterior. Não é mais álbum cheio. A gente vai soltando música por música e isso é muito legal. É sem aquela coisa certinha de lançar todo um álbum e não saber…Pelo menos, você vai sentindo o público e tal. Eu tentei fazer um disco de muito significado, de signo mesmo, falando da minha vivência e da minha experiência como mulher, como mulher preta, das coisas sexuais que eu já vivi. Quem ouvir esse disco vai conhecer muito sobre mim. Cada música eu vou lançar em ordem, com relação com as coisas que foram acontecendo na minha vida. A “Comando” ela só abre. A partir da próxima vocês vão poder entender tudo o que eu passei, etapa por etapa, até desabrochar e ter chegado nesta fase. Podem esperar uma coisa muito verdadeira, de dentro pra fora, muito autoral, documental. Minha visão não só da sociedade, como da sexualidade. Vai ser lindo. Estou muito animada. Teremos muitas parcerias.