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Negra Li reflete sobre o divórcio, carreira e representatividade

Cantora conversou com o POPline ao lançar “Eu Preciso Ir”, parceria com Ferrugem


Conversei com Negra Li duas vezes em um intervalo de três meses. Em nosso primeiro bate-papo, ela estava visivelmente nervosa e empolgada com o lançamento de “Comando“, clipe que mostrou uma cantora liberta, madura, dona de si e revestida por uma estética pop à la Beyoncé.

Na última quarta-feira, faltava pouco para que a musica “Eu preciso ir” chegasse nas plataformas de streaming. A canção é uma parceria com o cantor Ferrugem e mistura alguns elementos do pagode com o típico R&B de Li. O time de compositores é praticamente o mesmo do lançamento anterior: Arthur Marques, King, Negra Li, Tin e, agora, Zebu e Timbó.

Li gosta de explicar o porquê das coisas, se empolga a cada resposta e é extremamente sagaz. É também uma artista muito franca. Perguntei à ela se os números ainda eram importantes mesmo depois de tantos anos de carreira e ela matou a pau, citou IZA e lembrou que pessoas pretas precisam ocupar lugares nas paradas de sucesso.

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Em outro momento, ela nos presenteou com a história do filho de uma amiga que inspirou algumas escolhas estéticas de seu trabalho. Na resposta seguinte, ela se questionou a razão pela qual contou aquela história a um jornalista, mas se conformou com a sua franqueza e transparência.

O bate-papo não poderia deixar de abordar o fim do casamento de 10 anos de Negra Li com Carlos Cesar Junior, o Junior Dread, com quem ela teve dois filhos e de quem fala em “Eu preciso Ir”. O divórcio anunciado há um ano fez renascer a artista e ela detalha esse processo com maestria. Desliguei a chamada do zoom com uma certeza: se entrevistasse Li no auge dos anos 2000, na época do hit “Você vai estar na minha”, talvez não encontrasse o brilho que vi nos olhos da cantora que não tem medo de quase nada.

Confira:

Eu queria começar perguntando sobre esses elementos do pagode, que são destaques em “Eu Preciso Ir”. Como surgiu essa ideia e como esse gênero conversa com a sua trajetória? 

Eu já fiz alguns projetos de samba, na cidade do samba, fiz também com o Jeito Moleque. Eu sempre gosto de diversificar estilos musicais. Minha carreira sempre foi assim. Desde que eu entrei no coral da USP, em 2000, que eu tive essa vontade de cantar outras coisas, além de cantar só o rap, porque lá eu cantava do erudito ao popular. Para o meu disco não seria diferente. A primeira música que eu fiz para o meu disco não foi essa, foi uma que eu ainda vou lançar, que eu cheguei falando assim ‘olha, acabei de ter uma relação assim, assado, preciso falar’, falei. Depois, eu parei e pensei ‘bom, como eu quero o começo? Eu quero falar do fim’, do fim do meu relacionamento e tal. A gente, então, falou assim ‘qual vai ser o ritmo?’ e pensamos ‘vamos fazer uma sofrência’, a gente pensou muito na Alcione também quando a gente colocou a parte ‘mil loucuras’. E não tinha como não ser junto com o pagode, né? Porque R&B com pagode dá muito certo e já provaram isso, né? Thiaguinho já provou, o próprio Ferrugem, Dilsinho…

E a parceria com o Ferrugem como foi? 

O Ferrugem foi depois, depois que eu fiz a música, falei assim ‘nossa, isso aqui tinha que ser um feat.’, porque ela é curta, a historinha é curta, então, tinha que repetir e a gente achou interessante que tivesse um feat. (quem quem quem das vozes) aí eu falei assim ‘eu amo a voz do Ferrugem’. O [André] Corga falou ‘nossa, é fácil, é fácil porque eu já trabalhei com ele, então vamos de ferrugem’. Foi assim, por gostar muito da voz dele e querer juntar com a minha.

E o processo foi bacana? 

Ele foi muito fofo e, quando ele gravou, eu estava lá no estúdio. E eu pensei, gente, ele vai me dar um trabalho. Depois que ele colocou a voz, eu falei assim ‘estou ferrada’. O que eu vou fazer? A música é sua, toma. (risos). Ele se apropriou de uma forma, o tom ficou perfeito pra ele. Ele mesmo se animou muito, disse que a esposa, quando ouviu a guia, disse que ele tinha que gravar. Deu tudo certo. Ele arrasou, ele gravando é incrível.

Essa música fala sobre o fim do seu casamento. É difícil se abrir sobre um tema como esse? Falar do fim de um casamento, que envolve a sua família, é difícil pra você?

Olha, não é difícil agora, depois da experiência a gente vai tomando coragem. Acho que tudo o que é falado com cuidado, com elegância, com respeito, dá para falar, dá pra falar sobre qualquer coisa. Eu sou muito preservada, eu me preservo muito quando o assunto é pessoal. Agora um pouco menos, porque eu falo um pouco do meu dia a dia com as crianças, mas tem coisas que não. Quando eu terminei o meu casamento, eu não quis expor, fiquei bem quietinha. É até bom porque você deixa passar porque é conturbado o final de uma relação. Agora, eu me sinto super a vontade de falar, principalmente, porque eu estou falando, como na música, sem rancor. Só estou falando de um sentimento, de uma sensação que eu tive quando eu separei. Eu acho muito legal dividir isso com outras mulheres que se sentem assim, passaram por relacionamentos conturbados e precisaram tomar essa decisão de ir embora. Eu me sinto a vontade de falar, sim, desde que eu tenha uns limites aí para preservar a mim e o meu ex-parceiro.

Você canta na música sobre esse amor visceral e essa situação de muito respeito pelo outro também, como você mesmo falou agora. O que você aprendeu neste processo de término? Não exatamente no fim, mas do momento em que você tomou a decisão de terminar e se tornar a mulher que vimos em “Comando”, sabe? O que veio aí? 

Muitas coisas, um turbilhão de sentimentos. Não é fácil lidar com um sentimento de quando você se enxerga de fora. Quando você termina uma relação, você também enxerga os seus defeitos, você também enxerga a pessoa em que você se transformou. Quando você é infeliz, jesus, você se anula e acaba tendo umas atitudes que você não se reconhece. Então, quando eu olhei de fora, que ele foi embora, que eu fiquei na minha casa, que começavam a vir os flash da relação – falava assim ‘meu deus, no que eu estava me tornando’. Foi difícil me deparar com isso porque aí você se culpa, você se sente horrível, até você entender que não era você, era o que você estava sentindo, era o que a relação, que não estava bem, te causava. Era o espelho, reflete. Se você não está feliz, você vai ficar uma pessoa amarga, você vai reclamar, ficar infeliz. É complicado. Antes dessa fase, é a fase de você culpar o outro só, ter raiva, discutir, jogar tudo na cara. Depois você se olhar e fala ‘nu’ (risos). Só depois você entende, você se perdoa, aí vem o autoconhecimento, aquela coisa de flertar, sua sexualidade, tudo volta, aquele fogo que você acha que perdeu. Nossa, é uma delicia. É uma montanha-russa, mas o finalzinho, que é a parte boa, é maravilhoso. Você não quer sair mais daqui, né? (colocando a mão como se estivesse no topo da montanha-russa). Tanto que eu estou sozinha a quase dois anos, até estava tendo umas aventurinhas, mas, hoje, nossa, estou até com medo do tanto que eu estou me amando e amando este processo de aproveitar a minha própria companhia.

Eu senti que, ao falar dos novos flertes, da montanha-russa, você está dando spoilers das próximas músicas.

(risos) Ainda não definimos a próxima, mas, sim, vão ter músicas…Como estamos criando uma coisa quase que autobiográfica, pode ser que a próxima, sim, eu comece a falar dos relacionamentos que eu tive, das aventuras.

E, Li, você fala deste momento de ir embora. Quando você entende, depois de um longo casamento, que embora o amor ainda esteja ali, o relacionamento acabou?

Aí, cara…É muito difícil. Quando você consegue se sentir sozinha tendo alguém. É muito louco isso, não está certo. Eu me via e falava assim ‘não, gente, como eu posso ter um namorado e achar que eu não tenho um namorado?’. Entende? É muito louco. Então, alguma coisa não estava certa. No fim do nosso relacionamento, as pessoas estavam me perguntando, se teve traição, pedindo para eu falar de traição. Gente, traição não acaba a relação, não é a traição em si. No meu caso, eu digo, foi o desgaste da relação pela incompatibilidade de gênios. No meio do caminho, a gente percebeu que a gente era muito diferente, queríamos coisas diferentes para a nossa relação, tínhamos formas diferentes de cuidar da relação, de olhar pra ela, pros filhos e de enxergar um futuro. Cada um tinha uma ideia e é muito louco porque eu já sabia disso quando eu namorava, mas quando a gente está apaixonada, falamos assim ‘não, no final, ele vai mudar de ideia. Vai ser do jeito que eu penso mesmo, a gente vai ficar assim, assado’, olha isso. Você vê que não muda, não tem essa. Mas foi pelo desgaste mesmo e eu acho que eu me senti que já era o fim quando eu me senti sozinha mesmo tendo alguém dentro da minha própria casa. Ele estava em um cômodo, eu em outro e me sentia sozinha.

Você estava falando sobre desgaste, sobre não se reconhecer mais e eu lembro que na última entrevista que fizemos, você estava fazendo uma retrospectiva e você falou algo como ‘ah, houve um momento da minha carreira, no qual eu fiquei mais retraída, fiquei mais na minha’. Agora, você chega com uma baita produção, com um clipe como foi o de “Comando”, que repercutiu bem, que teve uma aceitação muito grande do público e uma ousadia muito grande de sua parte também. Você acha que esse momento da sua vida, agora, comparado ao momento em que você estava neste relacionamento, afetou a sua carreira de alguma forma, a maneira você lida com a sua música e com a sua arte?

Sim. Eu atrai. Atrai tudo isso que está acontecendo comigo. Eu sinto que chegou a hora destas coisas acontecerem comigo. Talvez eu não estivesse preparada antes. Eu sempre quis isso e nunca entendi porque que eu não tinha. Acho que era a energia mesmo que estava em volta de mim, do que estava acontecendo. Eu precisava resolver. Acho que Deus já estava falando assim: ‘amada, eu quero fazer isso que você está me pedindo, mas primeiro você precisa limpar umas coisas que não está muito certo e você está insistindo’. Foi como um passe de mágica. Foi eu terminar a relação e tudo começou…Você se ocupa demais também, né? Energicamente, você fica pesada, você fica fechada para outras coisas. Quando um casamento está doente, você cuida dele, você toma muito tempo cuidando dele. Você demanda muita energia querendo fazer dar certo, reclamando, falando, conversando, pedindo a Deus. Ou seja, estava ocupada ali. As outras coisas ficam pra trás como eu falo na música ‘me deixei pra trás’, exatamente por conta disso. Eu acabei mudando as minhas prioridades. E, agora, sem ter esse problema, sem ter esse câncer…Eu falo de ‘câncer’ porque [com câncer] você não tem que fazer quimioterapia? Você fica tendo que ir lá, fazer o tratamento, cuidando e, quando é curado, parou. Você não precisa mais ir no hospital fazer o tratamento e sobra um tempo. Então, agora, eu posso cuidar de mim, sou uma pessoa mais leve até para as meus filhos, me tornei uma pessoa melhor até para eles. Minha filha vai fazer 12 anos e eu posso ter mais tempo para ela, responder as questões dela, as curiosidades dela, a gente virou amiga. Ela fala das coisas que passam pela cabeça dela na adolescência.

Vamos falar sobre o clipe. Fiquei sabendo que é inspirado nos anos 2000. Pode me contar? 

Foi uma ideia do [Diego] Timbó. Ele falou assim ‘Li, o que você acha da gente reviver a estética dos anos 2000?’. Na hora que ele falou, eu disse ‘super aceito’. Então vamos fazer a estética, o cabelo, o figurino, tudo. Desenhamos a história. Falei: ‘quero estar numa casa com um cara, a gente vai mostrar que a relação não está legal, e tudo mais’. Veio a ideia de colocar o Ferrugem também dentro de uma televisão, de um personagem, como um cantor dos anos 2000. Foi bem legal, achei que deu um resultado bacana. Tem umas cenas, assim, com um modelo que a gente escolheu (risos). Foi bem legal que eu quis colocar isso porque também é representativo. Eu tive o cuidado de escolher um homem branco, já que estamos falando de um cara que não foi legal, que eu mandei embora e eu não queria reforçar nenhum tipo de estereótipo negativo para um homem preto, que já é carregado de receber isso. Mas a gente vai, em uma hora, ousar com uma história bem legal, em que o cara mostra, né, um cara legal e tal, mas eu tive esse cuidado. E eu queria representar uma mulher preta…Olha, deixa eu contar uma história?

Uma amiga minha falou que o filho dela…A cor dela é branca, mas o pai dela é negro e tal. Ela se casou com um homem negro e ela disse que, quando estava grávida, não conseguia enxergar o filho dela negro, ela não conseguia imaginar um bebê negro. Ela falou que sentia que isso era por conta de que ela via pouco. Então, quando você vê pouco, você não consegue nem imaginar. Então, eu fiz questão de, na historinha, ter eu interpretando uma mulher sendo desejada, uma mulher de lingerie, uma mulher de camisola, uma mulher sendo amada, sendo beijada, pra que a gente tenha cada vez mais isso. E fora isso, dela não conseguir enxergar [o bebê nascendo negro], ela disse que o filhinho dela, com nove anos de idade, chegou nela e falou assim: ‘mamãe, eu acho que eu não quero fazer ‘virgem’ (trocando a palavra ‘sexo’ por ‘virgem’ por conta de uma conversa que ele ouviu). Ela disse: ‘mas porque você está falando isso?’. ‘Porque pessoas da minha cor, eu não acho bonito quando eles fazem virgem’, ele disse. Aquilo mexeu comigo. Falei assim ‘caramba, olha isso, olha a opinião do menino, como é ruim não ter uma representatividade até nisso, até nessas coisas. A gente tá acostumado a ver no carnaval e olhe lá, porque mudou bastante, né, as caras dos destaques [das escolhas de samba]? Enfim, eu fiz questão de mostrar isso. Apesar da música estar falando sobre o final de um relacionamento, mostra que o romance tá legal. Achei que fosse legal a gente ter um cara bonito, comigo bonita para ter, na memória das pessoas, uma mulher preta vivendo um romance. Entende o que eu quero dizer?

Li, “Comando” é uma música de abertura deste processo e é uma música também muito pop. “Eu preciso ir” é um pouco mais lenta, uma música sobre um tema que exige esse R&B, e é um feat com o Ferrugem, que é também um artista muito popular. Embora a música seja penetrante, ela é pop também no sentido de que é radiofônica, você escuta e sai cantando. Neste momento da sua carreira, com tantos anos e já consolidada, os números que essas músicas trazem ainda importam para você? Os números ainda são decisivos na sua carreira? Como são essas escolhas? 

Não tem como a gente não contar com os números. Ter números é importante por conta da representatividade, porque a gente [pessoas pretas] precisa estar lá, a gente precisa crescer, a gente precisa estar no poder. Não tem como eu não me preocupar com isso em qualquer trabalho que eu vou fazer mesmo que eu fale de amor. Eu estava vendo assim ‘nossa porque eu falei sobre isso na entrevista?’, caramba, porque é real. Por trás de todo trabalho meu vai ter essa preocupação em relação a representatividade. [Número] Não é uma coisa que eu quero a todo custo. Primeiro eu acho importante entregar um trabalho de boa qualidade, um trabalho de bom gosto, que eu goste, que eu goste de cantar. Músicas radiofônicas eu venho fazendo há um tempo na minha vida, desde “Você vai estar na minha” e, principalmente, com os feats do Skank, do “Um Minuto”, com o D’Black, só faltavam que elas fossem do meu disco, como “Você vai estar na minha”, só faltava eu voltar a tocar nas rádios e a estar na mídia, bastava eu ter isso que eu estou tendo agora: planejamento, uma boa estratégia de marketing, um bom trabalho por trás, sendo cuidada com um produtor artístico, diretor, muitas pessoas pensando nas mensagens por trás de cada trabalho para que seja verdadeiro, para que seja real original. Essa aí é até mais pop do que “Comando”, que, apesar da estética, eu rimo, passo uma mensagem e tal. Essa é só de amor, a letra fala de amor, melodia que super pega e tal. Eu acho importante a gente crescer e mandar o nosso trabalho para o maior número de pessoas possível. E, lógico, tudo com qualidade, com verdade, é o mais importante. Mas números? São importantes, sim, por isso que a gente investe, faz planejamento, para alcançar, para estar ali também. É importante, poxa, imagina…Quando eu vejo a IZA – maravilhosa, ali, com milhões de seguidores, com milhões de views no YouTube -, eu falo ‘graças a Deus’. Ela é extremamente necessária, ainda mais sendo uma preta retinta, sendo uma mulher linda, cantando muito, inteligentíssima. Nós somos necessárias, a gente precisa estar ali.

Teremos mais feats. então?

Teremos. Não vejo a hora. Não sei se a próxima vai ter feat. Eu queria, queria que fosse com uma mulher. Meu Deus do céu! Não posso dar muito spoiler (risos).