CENA 1
Um único integrante de um boygroup é chamado para uma reunião com os empresários. Eles lhe perguntam se ele conhece determinado aplicativo de relacionamento gay. O garoto diz que sim. Os executivos já sabiam a resposta. “Calma, não precisa ficar nervoso. A gente não vai contar para ninguém. Ainda bem que foi a gente que descobriu, e não outra pessoa”, dizem. O adolescente está nervoso, sim. Ouve que é melhor não falar sobre a sexualidade em público para “não prejudicar os outros meninos do grupo”. Pego de surpresa, acata. “Eu já me senti errado pela forma que me abordaram”, explica.
CENA 2
Já com 33 anos e muitos trabalhos no currículo, cantor está prestes a lançar uma música em parceria com uma amiga famosa. É um trabalho que tem tudo para chamar a atenção do público e da mídia. No dia de fazer as fotos para a capa, é aconselhado a prender seu cabelo comprido, para se encaixar no padrão heteronormativo masculino. “Prenderam meu cabelo de forma que parecesse que ele era curto”, lamenta o artista, dois anos antes de optar por tornar pública sua sexualidade e botar fim em situações assim.
CENA 3
Para não revelar sua sexualidade, ele está acostumado a falar “pessoa” nas entrevistas, quando o assunto é crush ou relacionamento amoroso. Não gosta de ter que esconder nada, mas é aconselhado a tal. Sua surpresa maior é quando abre a revista Capricho, sua entrevista está publicada ali, mas em vez de “qual é a pessoa perfeita para você”, como a repórter havia perguntado, estava lá “menina perfeita”. E sua resposta, como se ele tivesse respondido aquilo. Uma mentira. Ele nunca falou de “menina perfeita”. Não chegou a tanto. Ele fica com vergonha dos amigos, que sabem a verdade e nem sabem o que lhe dizer. “Sufocante”, define.
O discurso midiático em prol da diversidade não vale na prática. Público e indústria ainda demonstram resistência com cantores pop assumidamente gays. Embora o pop seja amplamente abraçado por ouvintes LGBTQIA+, o mesmo não acontece quando o artista se apresenta como tal. O segmento é dominado por mulheres, as “divas”. Homens gays, ainda que vorazes consumidores, tendem a ficar fora do mainstream, com trabalhos independentes e de alcance menor, ou a serem pasteurizados quando assinam contratos com grandes gravadores. A pasteurização, em geral, inclui o ocultamento da sexualidade para não “espantar o público”. Soa preconceituoso e é.
O ranking semanal das músicas mais tocadas das rádios no Brasil traz apenas um homem assumidamente gay na atualização mais recente: o britânico MNEK. Quando se trata do ranking restrito ao pop nacional, não há nenhum homem gay. A resistência é conhecida de todos. Pabllo Vittar sofre boicote declarado há anos. Gloria Groove já reclamou da situação em entrevista ao POPline. E Jão, por sua vez, só conseguiu entrar nas rádios com seu single mais recente, “Coringa”, depois de dois álbuns lançados e duas turnês nacionais bem sucedidas. Rádios pop não tocavam o cantor alegando que seu som “parecia sertanejo”. Ouça e tire suas próprias conclusões.
Beni Falcone, vocalista do famoso Candybloco, sabe bem disso. Ele despontou no mundo artístico em “High School Musical – A Seleção”, um produto do Disney Channel, em 2008. Tinha 24 anos. Desde o início, foi aconselhado a esconder sua sexualidade – algo que foi reforçado por seus empresários ao longo da carreira. Até seu nome artístico era uma questão. Na época, usava Bernardo Falcone. “Sempre encontrei resistência para mudar, porque Beni era ‘viado demais’ e ninguém me levaria a sério”, conta ao POPline.
É dele a cena 2 que abre essa matéria. Hoje em dia, Bernardo trabalha de forma independente, usa cabelo comprido, passa purpurina na cara e pinta a unha. Antes, não podia, tentando se encaixar no mercado. Eram sempre homens heterossexuais nos cargos de chefia em todas as reuniões que ele ia, e isso pautava as decisões. “Já tentaram me encaixar em tudo quanto é tipo de categoria para que a questão da orientação sexual ficasse em segundo plano: cantor de música eletrônica, cantor de pop alternativo. Já me chamaram de tudo para não falar o que sou – um cantor de música pop que é assumidamente gay”, sublinha.
Frustração no sufocamento da autenticidade
Leandro Buenno passou pelo mesmo. O cantor foi revelado pelo “The Voice Brasil” aos 21 anos e assinou contrato com a Sony Music. Com a gravadora, lançou seu primeiro EP e assistiu ao single “Essa Noite” ser inserido em diversas playlists. É seu maior sucesso até hoje, com mais de um milhão de streams, seis anos depois. Mas essa ficou longe de ser a realização de um sonho. “Nessa música, escrevi ‘essa mina vai ser minha inspiração’. Não tem nada a ver comigo, e fui eu que escrevi. Queria fazer parte do cenário, entrar para a cena e me deixei levar e achar que isso era uma coisa ok”, lembra.
“Eu tinha uma produtora por trás, me dizendo o que fazer e falar. Foi muito frustrante para mim. Sempre tive minha sexualidade muito bem resolvida e, me percebi tendo que mentir nas minhas próprias composições. Tinha que escrever sob demanda coisas que não eram minha realidade, porque me diziam que seria o melhor caminho para mim”, completa.
É dele a cena 3 que abre essa matéria, da pergunta sobre a “menina perfeita”.
Piadas homofóbicas nos bastidores
Pansexual, Guilherme ST passou pela mesma situação diversas vezes: “Capricho e Toda Teen perguntavam direto sobre o tipo de menina ideal e eu me segurava para não lançar que também gostava de bofe (risos)”. Ele foi membro do boygroup P9, que abriu shows do One Direction e do Justin Bieber no Brasil.
É o protagonista da cena 1 que abre essa matéria. Durante o período que fez parte do grupo, teve que sair do app, esconder namorado (o que colaborou para o término), tomar cuidado com o que falava e com quem era visto. “Quando falei para o grupo que era bi (antes de me entender pan), ficou uma tensão no ar, mas os meninos fingiram que estava tudo ok. Depois virou fofoca”, conta, “quando o grupo acabou, pensei ‘vou fazer o que quiser da minha vida e despiroquei”. Parou de se esconder, deixou o cabelo crescer e se entendeu pansexual. Engatou trabalhos como DJ em festas gay.
“Por eu ser normativo, os outros meninos do grupo, na maioria das vezes, não lembravam da minha sexualidade e faziam piadinhas homofóbicas e machistas. Eu fingia que não ligava. É um bagulho estrutural. Eles não faziam por querer. Mas rolava aquela dúvida: ‘será que não faziam mesmo?’. Por exemplo, depois que dei uma entrevista para o Pheeno [‘Ex-P9 revela ter sido proibido de sair do armário por empresária], um dos meninos deixou de me seguir”, desabafa.
Falta apoio do público para cantores pop gays
As imposições e recomendações relatadas até aqui por esses cantores mostram que o medo da rejeição do público pauta todo tipo de decisões. Rejeição essa que viria a partir da descoberta da sexualidade dos artistas. Essa preocupação de empresários tem fundamento? Em parte, sim. É fato que a maior parte dos lucros de um boygroup como P9, por exemplo, vem de meninas que sonham em namorar seus ídolos. Mas os mesmos produtos de mercado também são consumidos por fãs gays – o que parece ser ignorado. “Eu era o integrante favorito das ‘yags’. Era muito natural, porque a gente ficava horas na porta do hotel, zoando um ao outro”, aponta Guilherme ST.
Mas ele mesmo também percebe resistência do público para apoiar artistas masculinos assumidamente gays. “Eu tenho muito medo de lançar coisa nova. Tenho certeza que há resistência. Mas existem exceções, tipo Jão”, aponta. Ainda assim, Jão é discreto sobre sua vida pessoal fora das músicas e clipes. É o que a maioria faz para alcançar o mainstream e não se tornar um artista de nicho. “Eu cresci ouvindo que não poderia ser gay e ser cantor, ou então seria cantor só para gays”, confidencia o cantor Bruno Gadiol, conhecido também por ter atuado em “Malhação”. Ele tornou pública sua homossexualidade em 2018.
Por que até o fã gay prefere a cantora pop a um cantor pop gay?
Na música pop, homens já começam em desvantagem, porque o favoritismo do público (inclusive do fã gay) é por cantoras. “Falta senso de comunidade dentro da própria comunidade. A sigla G poderia ser mais unida e pensar de forma menos individual”, opina o cantor Davi, ex-Banda Uó. A preferência pelas divas é tema, inclusive, de dissertação de mestrado – “A construção das identidades dos homossexuais masculinos a partir do consumo de divas pop”, escrita pelo sociólogo Wellthon Rafael Aguiar Leal.
A pesquisa acadêmica aponta que o fã gay encontra na figura da diva pop uma fuga da heteronormatividade vigente nos ambientes das relações sociais. Nesse caso, não importa a sexualidade delas (Anitta é bissexual e Ludmilla é casada com uma mulher), mas sim a posição de poder que ela desfruta dentro da cultura da mídia.
“Essa veneração por mulheres na mídia não tem uma explicação totalmente definida mas encontrei algumas pistas. A primeira tem a ver com o processo de delírio, uma ideia de sonhar acordado enquanto se consome essas divas. Existe um apreço grande por uma mulher que, mesmo com sua performance de gênero num mundo machista que rechaça a feminilidade, consegue estar no topo. É uma feminilidade que venceu no mundo da mídia, exercendo uma feminilidade que é proibida para os homens. Consumir essas divas permite um alívio e encontro de que a feminilidade não está sendo rechaçado. É como se o fã estivesse na posição de poder da sua diva. Mesmo sendo feminina, é um fôlego imaginário, um sonhar acordado. No mundo real, quando se exerce a feminilidade, se é rechaçado, ainda mais quando vem de um corpo considerado masculino”, explica o sociólogo.
Isso justificaria maior adesão do público também às drags queens – que são homens gays que aparecem sob a imagem feminina. São performers que conseguem explorar essa tão desejada e rechaçada feminilidade. “Eu acho que cantores gays que não performam a ruptura da norma masculina podem encontrar barreiras com o público gay. Já temos diversos cantores no mundo heteronormativo em que vivemos, e mais um que não rompe com essa lógica durante sua performance talvez seja visto como mais do mesmo”, aponta.
O cantor Davi, ex-Banda Uó, tem uma opinião diferente. Ele lembra que sofria retaliação quando postava alguma foto afeminado, dez anos atrás. “Não era bem aceito fora dos padrões heteronormativos. Tanto que hoje os que fazem mais sucesso são os que reproduzem padrões heteronormativos. Há um tempo atrás era impensável um clipe que incluísse o afeto entre dois homens. Até que começou a se fazer e a se construir esse ‘orgulho’, e os artistas foram fundamentais pra isso. Não incluir beijo gay em filmes ou novelas gera revolta mas lançar clipe com beijo não gera a mesma repercussão, por exemplo. Aí não adianta”, fala.
O caso das drag queens
A teoria do sociólogo Wellthon Leal, no entanto, encontra coro. O cantor Bruno Gadiol acredita também que o público consumidor de pop acabou se acostumando mais com a imagem da mulher no palco. “O público está mais acostumado a ouvir essas mulheres. Talvez por isso que o público gay não abraça tanto o cantor gay. É novo. As pessoas estão aprendendo a consumir. Talvez seja isso. Uma questão específica que homens gays passam na indústria é a desconstrução dessa homofobia social, porque, na verdade, o aspecto da pessoa ser gay é um pequeno detalhe na vida dela e não importa tanto assim”, opina.
Guilherme ST acha que Pabllo Vittar e Gloria Groove não fariam o mesmo sucesso caso se apresentassem como “o Pabllo e o Daniel”. Leandro Buenno, por sua vez, vê a situação com outros olhos: elas são bem sucedidas e abraçadas pelo público por sua autenticidade – a mesma autenticidade que é inibida e sufocada para a maioria dos cantores pop gays.
“O público abraça o cenário drag porque compra a ideia do que está sendo vendido na letra da música, na proposta da mensagem. O público sente verdade. Hoje em dia, o cenário masculino tem muita pouca gente cantando sobre algo real. A maioria está tentando fazer algo genérico. Por esse preconceito e pela vivência um pouco atrasada do Brasil, os meninos ainda estão tentando surfar a onda”, justifica Leandro.
Cantores seguem “no armário”
Durante o processo de elaboração dessa reportagem, os entrevistados foram questionados se ainda hoje existem cantores pop ocultando sua homossexualidade para se encaixar no mercado. Suas histórias, afinal, poderiam ser situações superadas. Com exceção de Leandro, todos os outros disseram que sim. “O mundo pop é muito voltado para as menininhas fãs dos homens heteros, nutrindo aquela expectativa de conseguir ficar com o cara. E existe também o fato da maioria dos gays sentir atração por caras mais normativos. Essa coisa do heterossexual ser fetiche”, diz Guilherme. Beni Falcone elabora:
“Por mais que pareça que a gente está caminhando para uma sociedade mais inclusiva, onde o pink money é algo extremamente relevante, a gente ainda está no velho Brasil de sempre. Para além das percepções de mercado, ainda tem as questões internas das pessoas. Infelizmente, ainda tem muito cantor dentro do armário. Meu recado para eles é: ‘se libertem!'”
O cantor Romero Ferro sentiu a incumbência de ser um porta-voz da comunidade, falando e quebrando tabus. “Sou do interior de Pernambuco, e percebo uma diferença gritante da mentalidade das pessoas da capital e no interior. Esses pensamentos precisam ser combatidos, porque estão matando a gente”, pontua. Ele destaca ainda a falta de respeito de alguns contratantes, simplesmente por ser gay. “Receber cantada de contratante antes de subir no palco, mão boba apertando a bunda… Vixe, as pessoas as vezes pensam que LGBT é uma piada, e nos aliam muito a um antro de promiscuidade”, reclama.
“Eu também entendo que cada artista tem seu processo e ele é muito individual, e depende de muitas variáveis, inclusive do nicho musical. Terão aqueles que vão dar a cara a tapa, e outros que não. É a narrativa de vida de cada um, e isso precisa ser respeitado”, completa.
Perspectivas para o futuro
O público não consome cantores pop gay porque a indústria não investe neles ou a indústria não investe neles porque o público não consome? “É como discutir o que vem primeiro, o ovo ou a galinha”, brinca Beni. “É uma comunhão dos dois lados”, sugere Romero. “Esse preconceito vai começar a se desprender quando as pessoas começarem a se conectar com aquilo que está sendo cantado – isso com letra, com produção, com a vida do artista”, observa Leandro.
Guilherme acredita que é o público, a partir de uma mudança social, que vai estimular mudanças na indústria. O mercado aposta no que dá dinheiro. “A mudança teria que vir do público classe A para chegar ao consumo das outras classes, que se espelham, e a indústria acataria isso. Acho que já rolou um avanço”, sinaliza.
Davi também reconhece a importância do público nessa virada. “Não adianta só acompanhar, tem que apoiar comprando o que o artista vende para continuar seu trabalho, divulgar, ser a própria força”, diz. Mas é claro que a indústria tem seu papel.
“Não se cria demanda pela indústria e não há demanda suficiente sendo criada pelo público para a indústria acompanhar. Nos espaços em que deveriam ser ocupados pela diversidade, como as Paradas do Orgulho, as empresas poderiam se atentar a colocar nos seus carros mais artistas da sigla, incluindo a G, e não uma infinidade de artistas héteros cisgêro. O público em sua maioria não questiona essa postura”, aponta Davi.
Romero Ferro, além disso tudo, defende o poder de ação dos próprios artistas – com gravadoras ou independentes. “Cabe a nós, artistas que se posicionam, falar mais abertamente sobre tudo isso. Pra que exista um naturalização. Mas não é fácil, é uma mudança que precisa acontecer em conjunto, e não vai ser da noite para o dia”, conclui o cantor.
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