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Mv Bill reflete sobre nova cena do rap: ‘o trânsito é mais aberto’

Rapper apresentou o seu álbum “Voando Baixo” nesta sexta-feira (30)

Crédito: Pomo Estúdio

Alguns trabalhos musicais lançados nos últimos meses se debruçaram sobre a questão da pandemia, mas poucos com um olhar social e crítico tão aguçado como os apresentados pelo rap. O estilo musical, parte de uma cultura gigantesca e diversa, é uma das maiores ferramentas culturais de transformação social do país em meio ao caos.

Se Mc Hariel, de 23 anos, olhou para o cenário político e pandêmico com a sagacidade da juventude em seu single “2020”, Mv Bill, aos 47, observa tudo com a experiência proporcionada por anos de uma consolidada carreira. Em seu novo álbum “Voando Baixo”, o “cria” da Cidade de Deus apresenta um manifesto-rap sobre o cotidiano de um país “desestabilizado” e atordoado pelo negacionismo. As 12 faixas do projeto são refrescos contemporâneos conectados a uma estrutura que abraça novidades, mas não solta a mão do tradicional, da mensagem, do recado.

Capa de “Voando Baixo”:

Crédito: Pomo Estúdio

Mv Bill conta que quis estar mais próximo de pessoas comuns e se conectar a realidade delas sem deixar de dar o alento que os tempos tortuosos, mas previsíveis, pendem. O disco conta com as participações de Kmila CDD, Nocivo Shomon, ADL, Stefanie, Bob do Contra, DJ Luciano Rocha, além de Cristina, com quem o rapper já havia trabalhado na introdução de um de seus maiores sucessos, “Estilo Vagabundo”, e volta em um interlúdio. A produção executiva e fonográfica é da MV Bill Produções Artísticas, enquanto a mixagem e masterização ficou por conta do DJ Caique, exceto a faixa “Milicítico“, assinada por Tibery.

Ouça o álbum:

O POPline conversou com MV Bill e falou sobre o lançamento de “Voando Baixo”, alguns temas abordados no novo álbum, livros que podem ser lançados em breve e a nova cena do rap nacional. Confira:

POPline: Pela abordagem, o “Voando Baixo” parece ter sido produzido a pouco tempo. É comum artistas terminarem uma música, um single e já lançarem para não perder o timing, mas um álbum todo é diferente. Como foi o período de produção?

MV BILL: Eu venho de uma toada de só lançar singles. Lancei muitos singles em 2019 e 2020 até formar um álbum. Desta vez, eu optei por algo diferente. Na verdade, eu comecei 2021 como muitos, sem certeza de nada, sem saber direito o que tem que fazer. Ouvindo algumas pessoas no twitter, que é uma das redes que eu mais uso, elas começaram a falar ‘pô, Bill, porque você não lança um álbum?’, ‘lança um disco’, ‘a gente quer ouvir um álbum’. Daí eu comecei a me colocar na situação de fã também. Eles ficam ali, na expectativa para você lançar um single, aí você lança um single com clipe, o cara vê o clipe, se empolga com o vídeo que tem três minutos e aí acabou. Querem mais disso e o álbum proporciona essa parada. Como estava todo mundo meio acostumado a ouvir música solta, pensei que talvez esse seja o momento de resgatar um momento que eu vivi, de ouro na música, de você pegar um álbum e ouvir de ponta a ponta, sabe? Você conhece o disco todo, sabe todas as músicas. Para mim, como artista, é diferente você fazer singles soltos e depois lançar tudo em um álbum do que você fazer algo pensado, com início, meio e fim, com as faixas tendo uma conexão. Comecei a pensar nas sugestões dessa rapaziada que falou comigo pelo twitter, isso foi no final de Janeiro. Escrevi nesse período, com base nesses acontecimentos atuais. Munição para fazer esse tipo de rap é o que não falta. Uma boa oportunidade para lançar um disco onde as pessoas não precisem usar o corpo para curtir. Não precisa dançar. Basta você parar e refletir sobre o que tá sendo dito, balançar a cabeça. É mais reflexivo do que dançante.

POPline: E ele traça alguns paralelos com a sua trajetória, mas se mantém atual. Queria saber como você está enxergando esse momento, tanto a questão da pandemia quanto a política. Os dois temas são tratados no álbum. Foi difícil condensar tudo isso?

MV BILL: Eu vi que muitos artistas preferiram não lançar nada [na pandemia], não fazer trabalhos e outros talvez não tiveram ideias para lançar alguma coisa. Como eu sempre fiz músicas nesse estilo, mesmo antes da pandemia, até em momentos de carnaval eu estava escrevendo sobre esse tipo de coisa…Quando chegou esse momento, não foi uma mudança tão radical. É lógico que o mundo parar é foda, é sofrível ficar dentro de casa. Mas sabe quando você vive em uma linha tênue em que você acha que isso pode acontecer a qualquer momento? Onde as pessoas parecem estar felizes, mas a gente sabe que não estão. A gente vive um caos e, com a pandemia, esse caos fica mais acentuado, ele aparece um pouco mais. É muito difícil você fazer um disco dentro da pandemia, com distanciamento, trabalhando com artistas de outros estados…Só com a internet. Ainda bem que a gente tem a internet para poder fazer isso. Se não fosse isso, seria bem difícil.

Eu acabei de lançar um disco, no pior momento, com o pior tipo de política que a gente poderia ter.

Crédito: Pomo Estúdio

POPline: Em uma das faixas você fala de cancelamento. Eu queria saber sua opinião. Como lidar com esse paradigma?

MV Bill: Eu acho que o cancelamento é uma realidade atual. Ele não pode ser muito temido, mas também não pode ser ignorado. Não pode ser temido porque, às vezes, a pessoa recebe uma enxurrada de mensagens dizendo que vai ser cancelada por pessoas que simplesmente não te seguem, não interagem com você. Se essas pessoas te cancelarem, e o restante continuar, não vai mudar absolutamente nada na sua vida. Agora, ele é temeroso sim, se aquelas pessoas que te seguem, que seguem o artista, por acaso acharem que aquilo é verdade ou que você está errado em alguma situação e te cancelarem, aí sim é o final do artista, o artista está simplesmente liquidado. Acho que é importante você saber lidar com esse mundo atual, com essa realidade, mas também não levar isso muito a sério, pensar mais nas pessoas que te seguem. Eu penso muito nas pessoas que me seguem, nas pessoas que me mantém vivo, que mantém a minha obra viva e automaticamente me ajudam a pagar meus boletos mensais. Tenho que dar atenção total a essas pessoas. Na música a gente fala um pouco disso, mas também falamos do auto cancelamento, onde a gente tem um grupo de pessoas que às vezes é muito grande, que se juntam para apontar o erro de alguém, às vezes é nosso, do nosso povo, do nosso nicho. Mas quando essa mesma pessoa faz uma benfeitoria, um lance legal, lança uma música, arruma um namorado, uma namorada, ninguém vai lá felicitar. Então a gente tem que tomar cuidado com esse tipo de postura. Acho totalmente errado, acho que a gente não deveria se tratar dessa forma, nem se cobrar tanto.

Quem estiver errado, precisa ser cobrado, mas a gente não precisa ficar juntando uma patrulha para ficar caçando quem tá errado quanto ela também pode exaltar quem estiver do lado certo.

POPline: Sobre uma das participações em “Voando baixo”, acho que eu reconheço a voz que aparece em “Última Forma” de algum lugar, Cristina é sua vizinha na ‘Cidade de Deus’, certo?

MV Bill: Ela é a mesma voz que faz o xingamento antes de uma das músicas mais famosas minhas que é ‘Estilo Vagabundo’. Para fazer esse interlúdio entre as músicas, eu quis chamar a Cristina e foi de primeira aquela gravação dela (risos). Eu só disse para ela qual era o roteiro e ela pau. Eu nem disse para ela quais palavras ela tinha que usar, ela usou aquilo ali. Falei ‘nossa, mano, tu é muito atriz, cara’.

POPline: Esse paralelo entre as duas faixas é incrível. A sua visão sobre relacionamentos mudou desde ‘Estilo Vagabundo’?

MV Bill: Como pessoa, a gente vai evoluindo. Eu naturalmente, pela minha idade, já não sou mais aquele ‘estilo vagabundo’ de 2006. Vale lembrar que as coisas que eu estou falando, em muitos momentos nesse disco, principalmente as coisas de ‘historinha’ que não é uma coisa autobiográfica. Mas é uma coisa que as pessoas podem ouvir e se identificar de alguma forma, mas não é autobiográfico não. O estilo vagabundo pode voltar a qualquer momento (risos).

POPline: Você tinha um livro de contos pronto para ser lançado esse ano. Queria saber se ainda vai rolar, como estão as coisas, e se você escreveu concomitantemente ao álbum.

MV Bill: Eu comecei a escrever o livro no ano passado, já está tudo pronto. Está escrito. Mas aí, quando veio essa ideia de fazer um álbum, eu pensei em dar uma segurada no livro para conversar com as editoras, ver as propostas, os prazos. Pelo fato de estar no meio de uma pandemia, talvez nenhuma editora esteja operando na velocidade que o meu trabalho gostaria de ter. Parei um pouquinho as conversas que estavam rolando para dar atenção para o disco, mas depois do lançamento eu volto com atenção total para o livro. São 27 contos em que eu estou falando de várias fases da minha vida. Muitas coisas curiosas, que ninguém sabe, e outras coisas que as pessoas sabem, mas não estão ligadas nos bastidores da história, sabe? Falo da ida icônica ao Faustão, os bastidores daquela participação. Falo de uma foto, que volta e meia aparece na internet, que é eu com uma porrada de ‘maluco’ do rap junto com o ex-presidente Lula. Ali a gente não estava fazendo campanha política, teve uma coisa que nos levou até o presidente. Foi a primeira comitiva de hip hop a ser recebida por um chefe de estado no mundo. Falo da minha participação no Free Jazz Festival, que eu cantei com uma arma na cintura, falo como foi escrever ‘estilo vagabundo’, meu encontro com a Cristina e dos testes que fiz com outras amigas que eu achava mais foda e quando eu cheguei na Cristina, a mais calma de todas, ela me deu exatamente o que eu precisava. É um livro com muitas curiosidades. Não sei se é um livro para todo mundo, mas todo mundo que curte o meu trabalho eu acho que vai gostar.

POPline: E a sua relação com a nova cena do rap? Você fala muito sobre juventude no seu trabalho, é uma causa que você abraça. Você já gravou ‘Poesia Acústica’, coisas com o L7, como você lida com essa nova cena? Eles influenciam no seu trabalho?

Tenho uma boa relação com boa parte deles. Acho que a nova cena do rap é muito parecida com a cena antiga, com a cena da minha era e com a cena que vem antes de mim. Tem um monte de coisa legal e um monte de coisa ruim…Não tem jeito. Entre as coisas legais, tem muitas coisas que eu curto. Eu acho importante criar esse trânsito com as coisas legais quando se tem essa abertura, sem forçação de barra, querer estar perto de quem está no hype para poder aparecer mais, isso eu não acho legal. Mas quando se cria uma conexão artística com a outra pessoa, eu acho muito legal porque, embora muitos desses novos me chamem de professor, eu também aprendo muito na convivência com eles, é uma via de mão dupla. Eu sou muito amigo da rapaziada da ADL, já fui na casa do Lord, do DK lá em Teresópolis. Não foi só um convite musical. Você citou o L7, eu estava fazendo uma visita ao Papatinho, no estúdio, trocando uma ideia com ele sobre outro assunto. Ele falou ‘meu, quero te apresentar uma música e um cara’, ele me apresentou ele, a gente começou a trocar ideia e, depois de horas de troca de ideia, a gente decidiu que iríamos participar. Eu conheci a pessoa, sabe? Tem que ter uma conexão.

Com a nova geração, pessoas mais jovens, acho que o trânsito é mais aberto do que com os meus contemporâneos. A galera da minha época se respeita muito, só que a gente não se frequentava muito como faz a nova geração. Agora, um faz música com o outro o tempo inteiro, a minha geração não era assim. A gente admirava o Snoop Dog fazendo música com o 50 cent, mas aqui no Brasil a gente não se juntava assim. Todo mundo se respeita, mas ninguém fazia música junto. Você tem grandes nomes do rap nacional que nunca tiveram músicas juntos, dá uma pensada aí, quase não tem. Mas não é por falta de respeito ou afinidade, mas porque esse era um comportamento da minha geração. Que bom que eu consegui transcender tudo isso, continuar dando sequência na minha carreira, poder fazer