A cobrança para “ser machão”: a masculinidade tóxica em nossa sociedade
Você provavelmente leu a entrevista de Shawn Mendes para a Rolling Stone, ou ao menos os trechos dela que repercutiram na Internet: sobre sexualidade, maconha e Hailey Baldwin. Foi a primeira vez que o cantor foi capa da revista, o que é um certificado de “cheguei lá” para a maioria dos artistas, mas infelizmente o resultado não foi bom – e o próprio Shawn parece reconhecer isso. Sua entrevista foi um show de masculinidade frágil, o que é muito natural para um moleque de 20 anos, mas o tópico merece alguma atenção de nós, se realmente queremos mudar comportamentos tóxicos ainda neste século. Ele é um bom menino – todos nós o adoramos por isso – e espero que os fãs entendam que não estou condenando-o aqui, pelo contrário.
Em dado momento da reportagem, Shawn Mendes desabafa que está cansado das especulações sobre sua sexualidade e da sensação de ter que provar que não é gay. “No meu coração, sinto que tenho que ser visto em público com alguém – tipo uma garota – para provar às pessoas que não sou gay. Ainda que, no meu coração, eu saiba que isso [ser gay] não é uma coisa má, há uma parte de mim que pensa isso. E eu odeio essa parte de mim”, ele diz. Em outro trecho, ele conta que certa vez ficou muito incomodado por Taylor Swift postar um vídeo em que o maquiava. Chegou a acordar no meio da noite atormentado com essa questão: medo do que as pessoas iriam pensar. “Eu me sentia doente. Eu pensava ‘putz, por que eu deixei ela postar isso? Eu acabei de botar lenha na fogueira!'”. É o que eu entendo por masculinidade tóxica: um homem desesperado porque pode não parecer viril o suficiente para a sociedade.
Não sei como é no Canadá, mas acredito que isso seja global. Desde crianças, meninos são convocados a provar sua masculinidade – o tempo todo. “Você é um homem ou um rato?”, “homem não chora”, “não seja mulherzinha”, “seu viadinho”, “tá com medo?”. Os piores xingamentos para um rapaz são os que o associam à feminilidade e põem em cheque sua sexualidade. Não deveria ser assim, mas é. “Quer ver meninos brigando? Chegue num jardim de infância e pergunte quem é o marica”, aponta o sociólogo americano Michael Kimmel, “eles vão prontamente apontar o dedo uns aos outros, ou escolher um só, que terá de brigar com todos para provar o contrário”. Toda característica entendida como feminina é desprezada e deve ser eliminada, como se fosse algo menor e problemático. Ao homem, o único sentimento permitido expressar é a raiva. Daí nasce o machismo, a crença da superioridade masculina. O sexo e a sexualidade são naturais, mas o gênero é resultado de uma construção cultural. O que é masculino e o que é feminino resulta de um acordo social. Neste ponto, o pênis não dá ao menino às credenciais da masculinidade. Ele tem que prová-la. Como? Não demonstrando fraqueza; não se negando à brutalidade; pegando várias mulheres; e mais do que isso, pegando toda e qualquer mulher que lhe der mole, senão tem algo estranho aí.
Voltemos para a entrevista de Shawn Mendes. O cantor entregou que, sim, já ficou com Hailey Baldwin. Péssimo timing para uma declaração dessa. Ele nunca assumiu o relacionamento enquanto estavam juntos – pelo contrário, mentia sobre o assunto descaradamente – e agora que ela está casada com outro popstar, ele nos vem com essa. Sério mesmo, Shawn? Ficou parecendo que a modelo foi usada. Sentindo que precisava aparecer com uma mulher em público para que não achassem que ele era gay, Shawn fez exatamente isso com Hailey. Os dois foram de casal ao MET Gala e, quando perguntavam o que estava rolando, ele sempre dizia: “apenas amigos”. Exibia o troféu, mas não se comprometia com a moça. Sua heterossexualidade, assim, não era mais contestada. Shawn, pegador. Não é o único. Nesta última semana, Luan Santana fez exatamente o mesmo movimento. O cantor, que também lida com a cobrança da comprovação da heterossexualidade apesar de ter uma namorada há anos, disse em uma entrevista que já ficou com Bruna Marquezine e Anitta. Imagine se fosse Bruna ou Anitta listando os homens famosos que já pegaram: seriam chamadas de tudo quanto é nome. Ao homem, cabe. A potência sexual é um dos itens para comprovação da masculinidade: “a potência (pênis duro) é o maior e mais forte símbolo de prestígio masculino, e o pênis mole, sem potência, ou seja, broxa, é o maior fantasma da masculinidade”, escreveu o sociólogo José Eustáquio Diniz Alves.
Pesquisei um pouco sobre o assunto da masculinidade tóxica. Um artigo publicado pela doutora em Ciências Sociais Simone Cabral Marinho dos Santos na Jornada Internacional de Políticas Públicas resume a criação de homens: “desde cedo são educados, inclusive pelas mulheres, para se tornarem agressivos, competitivos, provedores e intolerantes com a manifestação de sentimentos e emoções. Há certo temor de serem rotulados como ‘fracos’, caso manifestem algum comportamento que lembre o campo emotivo feminino”. Na entrevista, Shawn Mendes diz que foi criado com 15 primas, trançando cabelo e pintando unhas, então talvez seja mesmo um pouquinho feminino, e fazer o quê? Honra seja feita, ele expressou várias vulnerabilidades na matéria. O que aconteceu? Sua foto foi estampada na capa da Rolling Stone com a chamada “confissões de um ídolo pop neurótico”. Demonstrou fraqueza? Neurótico! A represália sempre existe, em maior ou menor grau. Ele acabou reclamando no Twitter do teor da matéria (olha a masculinidade frágil se manifestando de novo): “claro que tenho minhas inseguranças e lutas, mas isso é apenas uma parte de mim”.
Eu sou um homem gay e sei o que é ser cobrado para “ser mais masculino”. Vivi isso na infância com meu pai e na adolescência com os outros meninos no colégio. Acredito que todo cara, independente da orientação sexual, passa por esses episódios em menor ou maior grau. Fiscalizar a masculinidade alheia é também uma maneira de reforçar a própria (o que explica um pouco da homofobia). Grande parte da construção da masculinidade é baseada no medo – de ser ou parecer gay, de ser ou parecer feminino, de ser ou parecer fraco – e isso já é bastante tóxico. O machismo, que é o resultado disso tudo, faz mal para todo mundo: para a mulher, para o homem gay e para o homem hetero. Eu não sabia, mas pesquisando descobri que o número de suicídios de homens é muito superior ao de mulheres. O machismo, então, mata todo mundo. Mata a mulher subjugada e objetificada e mata LGBTs pela LGBTfobia, mas também faz LGBTs se suicidarem por não suportarem a sociedade discriminadora e homens heteros se suicidarem por não suportarem a pressão. Shawn tocou neste ponto superficialmente na entrevista, e esse é um alerta muito positivo: “eu pensei ‘vocês estão com muita sorte por eu não ser um gay temendo me assumir’. Isso é algo que mata as pessoas”. Mas mata também heterossexuais na mesma situação. Essa nóia de provar a masculinidade pode mesmo ser fatal. Por dificuldade de pedir ajuda (demonstrar fraqueza), o homem hetero tem resistência em ir ao médico e cuidar da saúde; exame de próstata, então, nem pensar; não compartilha com a esposa ou namorada os problemas do trabalho (sobretudo humilhações do chefe); esconde demissões e problemas financeiros, contraindo dívidas imensas para manter a posição de poder e provedor; e não raro desconta esse peso em atos de violência, porque obviamente esse fardo estressa.
A masculinidade tóxica – como desprezo a tudo o que é feminino – é tão louca que existe até entre os gays. Eu consigo me lembrar perfeitamente de quando me aceitei enquanto homossexual: foi como tirar um enorme peso das costas. Eu não precisava mais provar masculinidade o tempo inteiro. Se fizesse qualquer gesto e achassem que eu era gay por conta disso, tudo bem, eu era mesmo. Que alívio não ter que me importar com isso! O homem “no armário” está se controlando o tempo inteiro para corresponder a um ideal de masculinidade heteronormativo. Como mostrei acima, o homem heterossexual também se fiscaliza e se priva. Mas, como falava, a masculinidade tóxica invade também o universo LGBT. Nos aplicativos de relacionamento, o que mais se lê é “não sou e não curto afeminados”, como um atestado de valor. Entre os próprios gays, os homens afeminados tendem a ser discriminados em algum grau. As travestis, que seriam o extremo da feminilidade, sofrem preconceito dentro da própria sigla, sem a menor sombra de dúvidas. Muitos vão dizer que é “questão de gosto, atração sexual”. Mas é mesmo o medo. O medo de ser ou parecer feminino, que é visto como algo menor, mesmo você não tendo mais que provar sua heterossexualidade. Essa fobia acomete o homem seja qual for sua orientação sexual. Somos muito bizarros. Muitas mulheres já sacaram isso.
O feminismo reivindica os direitos da mulher na sociedade e confronta o sistema patriarcal. É um movimento das mulheres, mas não exclui os homens, e pode e deve ser uma pauta pensada em coletivo. Repensar o papel da mulher na sociedade força os homens a se deslocarem também. É uma ótima oportunidade para repensar a própria ideia de masculinidade. Ela não precisa ser tão pesada. Dá para ser homem gostosinho, suave, sem sofrer nem fazer ninguém sofrer. Se a mulher está reconstruindo sua posição culturalmente, o homem também pode fazer isso, e considero tão urgente quanto. Literalmente, não tem sido fácil para ninguém. Se o ideal de masculino for revisto por cada um de nós, todo mundo vai sair ganhando. Shawn Mendes não é o único que tem medo de parecer gay e que sente que precisa aparecer publicamente com uma mulher. Ele só é um homem famoso e sua situação, por isso, é potencializada. Mas o Natal está chegando e todo mundo sabe a pergunta que os tios farão entre uma garfada no peru e outra no arroz com passas: “e as namoradinhas?” – sempre assim, no plural. Que a gente seja a geração que vai confrontar esses estereótipos. Sem “e as namoradinhas?” no futuro.
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