Se você está aqui, provavelmente foi uma das milhões de pessoas que ouviram “Sober”, a música nova de Demi Lovato. Não sei como você se sentiu com isso, mas eu fiquei muito abalado quando escutei. Na composição, assinada pela cantora, ela diz com todas as letras “não estou mais sóbria” – isso apenas três meses depois de comemorar publicamente seus seis anos de sobriedade. Eu não posso dizer que fiquei surpreso com a revelação. Já havia algum tempo que eu comentava na redação do POPline que Demi devia ter recaído. O unfollow em amigos próximos, o estresse público, o adiamento inexplicável dos shows na América do Sul na última hora, a tensão notável no Billboard Music Awards, o desaparecimento da agenda da turnê no site oficial – tudo isso me deixou em estado de alerta. Mas ouvir “wake me when the shakes are gone / and the cold sweats disappear” e “I don’t know why I do it every time, it’s only when I’m lonely” me entristeceu. De verdade. É triste que isso seja um single, porque parece um pedido de socorro.
Um dos meus melhores amigos sofre de alcoolismo, então tenho criado intimidade com o processo de recaídas. Meu avô era alcoólatra e morreu antes que eu pudesse conhecê-lo. Meu tio sofria de dependência química. Minha madrinha também. Eu cresci muito ciente do mal que álcool e drogas poderiam fazer. Eu não bebo, por opção, mas também por medo. Não é fácil bancar essa decisão. A maioria das pessoas, quando descobre que eu não bebo, fica excitada com a ideia de me introduzir ao álcool. “Mas você já experimentou tal drink?”. “Esse é docinho, você vai gostar”. “Ah, até o fim do curso, vou te dar seu primeiro porre”. “Você não bebe porque não me conheceu antes”. Blá blá blá. Eu não sou alcoólatra, mas sofro a pressão social. O normal é beber, não é não beber. Imagine alguém que realmente tem vício: é uma tentação diária. Sendo um popstar, então, o problema é potencializado. Na vida de nós, meros mortais, o expediente inclui cafézinhos. Na vida dessas celebridades, o expediente é em festas, eventos, shows, enfim, lugares onde a oferta de bebida alcoólica é grande. O DJ Avicii, que fazia uso abusivo de álcool e se suicidou em abril, falou sobre isso em uma entrevista de 2013: “você está viajando por aí, você mora em uma mala, você chega a qualquer lugar e há álcool grátis – é meio estranho se você não beber. Eu acabei adquirindo um hábito, porque você depende daquele encorajamento e autoconfiança que você obtém do álcool, e então fica viciado nisso”. Quem nunca ouviu a sugestão de beber um pouco para “se soltar”? Culturalmente, o álcool é associado à festa, à alegria, à celebração, à descontração e até ao poder. Tem gente que diz que não confia em quem não bebe. Na Bíblia, Jesus Cristo transformou água em vinho. Nem o livro sagrado foge a esse padrão. Ao contrário de outras drogas, bebidas alcoólicas são vendidas em supermercados. O acesso é fácil. Há comerciais na TV incentivando o consumo e a cultura pop está impregnada de bebida. Videoclipes glamorizam o álcool o tempo todo, e qualquer criança pode vê-los no Youtube. Eu sei que a maioria de vocês começou a beber antes de completar 18 anos.
Demi lançou “Sober” em 21 de junho e, no mesmo dia, subiu no palco do Sant Jordi Club, em Barcelona, Espanha, para um show da “Tell Me You Love Me Tour”. No dia seguinte, ela mostrou nas redes sociais que tatuou a palavra “free” (livre) no dedo, o que me parece muito estranho. Dúbio, no mínimo. Do que exatamente ela se considera livre? Da pressão para esconder a recaída, talvez. Mas, recaindo, não dá para dizer que se está livre. Pelo contrário, está presa ao álcool. Três dias após o lançamento da canção, ela se apresentou no Rock in Rio – Lisboa e nós pudemos assistir à transmissão ao vivo pela Internet. Eu achei que veria uma cantora desestabilizada e sem controle do que estava fazendo (você sabe, como Amy Winehouse ou Whitney Houston nos dias maus). Mas foi um bom show. Demi parecia até feliz. A mãe dela, que também passou por uma reabilitação (por vício em Xanax), comentou no Instagram que nunca viu a filha tão bonita ou soar tão incrível: “seu melhor show até agora”. Meu Deus, o que foi que eu perdi? Achei esquisito. Repito: foi mesmo um bom show. Mas a mãe devia estar preocupada com outras questões…
Por conta do single, da turnê e desse show específico, vi algumas pessoas – até mesmo fãs de Demi Lovato – desconfiando de que talvez ela não tivesse recaído de verdade. Que fosse só uma música ou o relato de uma experiência passada. A palavra marketing foi muito usada nas redes sociais. Eu me nego a acreditar nisso. Seria muito irresponsável. Demi já fez o contrário: mentiu que estava sóbria, depois da internação em uma clínica de reabilitação, e deu entrevistas sobre superação, quando ainda estava bebendo e se drogando. Mas o avesso disso não teria cabimento. Fui, então, conversar com um psicólogo – o que cuida do meu amigo alcoólatra – para tentar entender esse quadro. Existem vários tipos de relacionamento com o vício. Quando a gente ouve falar em recaída, é normal imaginar alguém abraçado à garrafa. Um quadro mais Amy Winehouse definhando em público. Mas nem sempre é assim. É possível recair e esconder das pessoas mais próximas. Trata-se do alcoólatra funcional, ou alcoolista funcional, que é capaz de seguir com seus compromissos e deveres – temporariamente. Esse psicólogo me explicou que o alcoolista funcional é tanto aquele que bebe no fim do dia, como um hábito (um “eu mereço”) quanto aquele que precisa beber quando acorda para deixar de tremer (sintoma da abstinência alcoólica) e ir trabalhar. No documentário “Simply Complicated” (2017), Demi disse: “eu só pensava que precisava ficar doida o suficiente pra passar por qualquer situação que apareceria no meu dia”. Você compreende? Mas o alcoolista funcional também é aquele que faz uso abusivo do álcool no fim de semana, mas acorda às 6h da manhã na segunda-feira para ir trabalhar. Aposto que você conhece alguém assim. Acho que nem todo mundo tem o autoconhecimento de sua relação com o álcool, porque é possível administrar a vida, mas sem conseguir se afastar da bebida.
Por quê? O álcool significa uma fonte de prazer imediato (o que pode gerar o processo compulsivo), e os espaços entre uma abstinência e outra vão se tornando menores. A pessoa bebe cada vez mais, buscando se manter funcional e esconder os tremores, a sudorese, as náuses, etc, característicos da abstinência. Faz sentido pensar o vício associado a outras patologias – como depressão, bipolaridade, ansiedade, distúrbios alimentares, estresse, etc. O adicto, quando bebe, gera em si uma sensação de prazer com a vida, ainda que efêmera. Parece-me o mesmo caso dos fumantes – que fumam porque estão tristes e fumam porque estão felizes. Minha mãe é assim. Minha avó também era (ela parou de fumar depois de 70 anos de tabaco). Eu encontro essa fonte de prazer no chocolate, e não sou menos dependente por isso. Eu não conheço Demi Lovato, não sei detalhes da vida íntima dela, não tenho a menor ideia do que causou a recaída nela, mas o que quero dizer é que, pelo que entendi, ela sentiu necessidade de buscar esse prazer imediato – infelizmente em algo que ela é viciada. Ela fala em solidão em “Sober”. Isso pode ser uma pista. Mas até uma música pode despertar a lembrança do álcool em um dependente. Uma perda, uma desilusão amorosa, uma angústia, uma decepção, uma surpresa infeliz, enfim. Há motivações conscientes e inconscientes.
Esse psicólogo com quem conversei (Mauro Dias, talvez seja legal dizer o nome) falou que ficar sem a droga é “encontrar um outro significado na relação com a vida”. Para quem tem problemas de saúde mental, não é uma missão fácil. Então, temos Demi, supostamente recaída, trabalhando em estúdio e cumprindo uma agenda de shows atribulada (com um adiamento aqui e outro acolá), tatuando “free” no dedo. É isso. Talvez tenha sido justamente a obrigação de seguir com o trabalho, quando na verdade precisava de uma pausa, que gerou nela a recaída. Demi queria pausar antes do “Tell Me You Love Me” e não o fez. Enfim, não vou ficar aqui tentando desvendar o catalisador da recaída, porque a questão não é essa. Mas tenho medo da prepotência – aquela coisa de achar que consegue parar quando quiser ou que tem controle de algo. Zeca Pagodinho, por exemplo, acha que não é alcoólatra. O psicólogo me explicou que essa prepotência é típica do início de uma recaída, porque o alcoólatra aguenta se manter funcional. Só que isso não é eterno. Alguma hora, essa pessoa vai disfuncionar. Seu processo, afinal, é compulsivo. Os últimos versos da música de Demi são um alento para todos que gostam dela e tem a capacidade de empatia: “I’m sorry that I’m here again / I promise I’ll get help / It wasn’t my intention / I’m sorry to myself“. Ela promete buscar ajuda. É o mais importante de toda sua mensagem.
Eu vi alguns fãs, no dia do lançamento da música, empolgados com o nº1 no iTunes, apontando as conquistas comerciais de Demi com esse trabalho. Não me levem a mal, mas não me parece o momento para isso. É assustadora a ideia de encarar “Sober” como entretenimento quantificável. É uma pessoa doente, se abrindo e se expondo para o mundo inteiro. É isso que merece atenção. Não temos como ajudar Demi efetivamente, mas transformar isso em um número de vendas ultrapassa o insensível. O alcoolismo é uma doença crônica, despertada por fatores genéticos e culturais, e destrói famílias, namoros, amizades, seres humanos. Segundo o portal DATASUS – Departamento de Informática do SUS, um jovem morre vítima de álcool a cada 36 horas no Brasil. É alarmante. O dado leva em conta tanto a intoxicação aguda quanto consequências do uso exagerado. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o álcool mata 3,3 milhões de pessoas em todo o mundo anualmente. Não quero ser aquele amigo chato, mas não custa nada você pensar qual a sua relação com a bebida. Reconhecer a compulsão não é tão simples. Atenção aos amigos e parentes. Você não pode ajudar a Demi, mas pode ajudá-los. Uma conversa franca, sem acusações ou cobranças, pode motivar alguém a iniciar o tratamento. Vou deixar aqui o link dos diversos grupos de Alcoólicos Anônimos espalhados pelo país. Lembre-se de que o que é funcional hoje pode disfuncionar amanhã.