Leonardo Torres

Coluna do Leonardo Torres: Beyoncé e Jay Z fazem o verdadeiro ARTPOP

“Simultaneamente, Beyoncé e Jay Z também se transformam e se elevam ao status de obras de arte”.

Eu tinha pelo menos três temas de coluna em mente, mas todos foram suspensos pelo lançamento repentino de “Everything Is Love”, o álbum conjunto de Beyoncé e Jay Z. Você sabe, ela é boa nisso: fazer a gente parar tudo e mudar o fluxo das ações. O álbum (9 músicas é mesmo o suficiente para ser considerado álbum?) veio com o clipe da inédita “APES**T” – uma homenagem e subversão das artes plásticas. O vídeo foi inteiramente gravado no Museu do Louvre, o maior do mundo, localizado em Paris, na França, o que me fez pensar que, sim, Beyoncé e Jay Z alcançaram o verdadeiro ARTPOP, ao mesmo tempo em que se consolidaram como POP ART.

A pop art foi um movimento artístico que bombou nos anos 1960 nos Estados Unidos, ao elevar ao estatuto de arte itens da cultura popular cotidiana, tais como objetos de consumo e figuras de celebridades. A pintura “Latas de Sopa Campbell”, de Andy Warhol, é um ótimo exemplo: algo ordinário como um enlatado ganha um refinamento ao virar obra de arte. Em 2006, a serigrafia “Small Torn Campbell Soup Can (Pepper Pot)” foi vendida em um leilão por US$ 11,7 milhões. Isso que é uma lata de sopa valiosa. Em 2013, Lady Gaga lançou o álbum e o conceito “ARTPOP”, querendo promover exatamente o oposto: levar o refinamento das artes plásticas para a cultura pop. Como todo mundo sabe, acabou não dando muito certo. Ela apareceu por aí com uns vestidos estampados com obras famosas, pintou o rosto e usou uma escultura de Jeff Koons na capa do disco, mas a verdade é que esse foi o álbum menos vendido de sua carreira até então e não rendeu nenhum prêmio relevante. Sem adesão das massas ou prestígio da elite artística, não é possível ser art nem pop. Nada contra. Eu adoro “Applause”, mas fatos são fatos: o projeto não vingou, infelizmente.

Tudo isso veio à minha cabeça ao assistir “APES**T”, que já está com 9,7 milhões de reproduções no Youtube no momento em que aperto o “publicar” nesta coluna. A cena do casal Carter posando na frente de “La Gioconda” aka “Mona Lisa” (de Leonardo Da Vinci) já nasce icônica. A escultura grega “Vitória de Samotrácia”, a pintura “Coroação do Imperador Napoleão” (de Jacques-Louis David), a escultura “Vênus de Milo” (de Alexandre Antioquia), a pintura “A Balsa de Medusa” (de Théodore Géricault), a “Grande Esfinge” do Egito, a pintura “Madame Récamier” (também de Jacques-Louis David) e a “Pirâmide do Louvre” (projetada por Ieoh Ming Pei) estão todos no clipe. As obras aparecem enquanto Beyoncé e Jay Z cantam “I can’t believe we made it”, soltam palavrões, falam de dinheiro e de maconha, e mandam recados para Super Bowl e Grammy – ou seja, um discurso totalmente vulgar, acompanhado de algumas das imagens mais refinadas que existem na Terra. Tudo isso para um clipe de seis minutos: eu também não consigo acreditar que eles fizeram algo assim. Quanto deve custar ter o Louvre só para si por algumas horas? Isso é mesmo monetizável? Acho que está muito clara aqui a aplicação do conceito de “artpop”, cunhado por Lady Gaga (ela sempre terá o mérito por isso). Sem avisar (ou “sem prometer”, como as pessoas gostam de dizer), o casal Carter jogou na cultura popular uma coleção de reconhecido valor artístico. É um clipe no Youtube, para um álbum anunciado durante um show em um estádio de futebol. Repito: não dava para ser mais acessível.

Se paro para pensar, é o que Beyoncé e Jay Z têm feito há bastante tempo. Em 2012, viraram notícia por pagar US$ 20 mil em uma pintura do jovem artista Hebru Brantley. Em 2013, o rapper gravou o clipe da música “Picasso Baby” na Pace Gallery, em Nova York, com participação da performer Marina Abramovic. Em 2016, a cantora incluiu a pintura até então desconhecida “Vista de Dordrecht” (do holandês Wim Jansen) no clipe de “Hold Up”, do álbum “Lemonade”. Depois que o vídeo saiu, o quadro foi exibido no museu de Dordrecht. Em 2017, Beyoncé anunciou sua gravidez de gêmeos com um ensaio fotográfico artístico, clicado por Awol Erizku, autor de uma série de fotos que recria pinturas clássicas com modelos negras. Beyoncé aparece em uma imagem com clara referência à “O Nascimento de Vênus”, famosa pintura de Sandro Botticelli. Quero dizer, eles vêm alimentando a cultura popular com o requinte da arte há tempos. Não avisar é mesmo a melhor estratégia. Ao inserir as obras com naturalidade em seu trabalho, tornam o universo das galerias e dos museus mais palatável ao invés de causar aversão ou estranheza, como aconteceu com Lady Gaga. Essa trajetória culmina com “APE**T”.

Simultaneamente, Beyoncé e Jay Z também se transformam e se elevam ao status de obras de arte. No clipe, os dois reivindicam esse lugar o tempo inteiro. A mensagem de Jay Z é clara: já não importam mais o Super Bowl e o Grammy. Eles querem outro nível. Posam como verdadeiros reis retratados em belíssimos quadros. Ocupam o Louvre como as sopas Campbell ocuparam as galerias de arte: como intrusos, mas com a certeza da legitimação. Diariamente, milhares – eu disse milhares – de turistas se aglomeram em torno da “Mona Lisa”, uma das principais atrações do Louvre. Ao se posicionarem na frente dela, no entanto, a cantora e o rapper conseguem o que nenhuma outra obra de arte naquela sala do museu é capaz: desviar o olhar do espectador. Beyoncé e Jay Z conseguem atrair para si os olhares destinados à Gioconda. Isso é MUITO forte. Pessoas do mundo inteiro passam por aquela sala, na frente do quadro, todos os dias e ninguém consegue algo assim. Beyoncé Jay Z fizeram e estão fazendo a cada vez que alguém dá play. No fim das contas, é uma troca: popularizam a sofisticação dos museus (a maioria das pessoas nunca terá a chance de ver o Louvre por dentro pessoalmente) e se tornam, eles mesmos, obras de arte.

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