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Exclusivo: Caetano Veloso fala sobre o documentário “Narciso em Férias”

Filme foi selecionado para o 77º Festival de Veneza e estreia nesta segunda-feira no Globoplay

Caetano Veloso fala sobre "Narciso em Férias", documentário que estreia hoje no Globoplay (Foto: Divulgação)

Um documento para a História“. É assim que Caetano VelosoNarciso em Férias, documentário que faz sua estreia mundial no Festival de Veneza e estará disponível, com exclusividade, no Globoplay nesta segunda-feira (7/09).

Foto: Divulgação

O filme faz um relato íntimo e detalhado da prisão do cantor e compositor baiano pela ditadura militar em dezembro de 1968. Os dias na solitária, as canções que marcaram o período de confinamento, os episódios vividos com seu amigo Gilberto Gil, preso no mesmo dia. Em Narciso em Férias, Caetano também lê e comenta uma série de documentos secretos da ditadura que estavam inéditos até hoje.

Aos 78 anos, Caetano repassa seus dias na solitária: “Eu tinha que comer ali no chão mesmo. Isso durou uma semana, mas pareceu uma eternidade. Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido. Me lembro muito de uma frase que o Rogério Duarte me disse logo que eu fui solto: ‘Quando a gente é preso, é preso para sempre’. Acho que é assim mesmo”, afirma no documentário.

O artista fala com exclusividade ao POPline sobre o filme dirigido por Renato Terra (“Uma Noite em 67”) e Ricardo Calil (“Cine Marrocos”), sendo uma realização Uns Produções, produzido por Paula Lavigne, e coproduzido pela VideoFilmes, de Walter Salles e João Moreira Salles.

De que forma o que você narra em “Narciso em Férias” impactou suas decisões ao longo da vida?

Claro que um acontecimento como aquele, prisão sem motivo explicitado, confinamento em outra cidade e, finalmente, exílio não podia deixar de marcar psicologicamente uma pessoa. Eu, particularmente, não estava preparado para nada semelhante a isso. Vivi muito mal os dois meses de cadeia, os quatro de confinamento em Salvador e os dois anos e meio de exílio. Tinha planos que abandonei e nunca pude recuperar.

A música sempre esteve presente em sua vida. Como ela foi um porto seguro nesse período?

Um dos meu planos era deixar de trabalhar profissionalmente com música. Ou ao menos de modo exclusivo ou mesmo prioritário. Queria fazer filmes e imaginava percorrer o Brasil numa Kombi. A música estaria presente: nunca deixei de ouvir canções e de me interessar por elas. Se eu fizesse filmes, faria música para suas trilhas sonoras. Ou escolheria coisas que tivessem muito valor musical para mim. Na prisão, não me permitiram ter um violão (diferentemente de Gil, que pôde ter um. Pois, por uma regra muito brasileira, quem tem curso superior completo tem regalias), mas eu compus “Irene”, sem violão sem nada – e Gil depois a acompanhou com acordes que poderiam ter-lhe valido uma parceria na composição. Enquanto estava numa solitária da PE da Tijuca, um preso político que ficava na cela ao lado me pedia que cantasse. E eu cantava. Com medo.

Algum dos documentos que aparecem no filme você teve acesso pela primeira vez nas gravações? Como foi reviver esse momento?

Até pouco tempo antes de Paulinha decidir fazer o filme, eu não tinha conhecimento de nada oficial a respeito da prisão, dos interrogatórios, de coisa nenhuma. Um amigo de Clara Flacksman, minha nora, casada com meu filho Moreno, deu a ela, para que ela me mostrasse, as páginas referentes a todo o processo. Isso, aliás, estimulou a ideia de fazer o documentário. Eu li alguma coisa antes de filmarmos, mas não li tudo. Renato e Ricardo escolheram trechos relevantes e me deram para ler na hora. Algumas coisas soaram engraçadas, muitas perguntas toscas. Outras levaram a lembranças que me comoveram. As fotografias da Terra vista do espaço sideral terminaram por me comover a um ponto que tive de pedir para interromperem as filmagens.

São relatos muito íntimos e repletos de detalhes. O que foi mais difícil de ser relembrado?

O que eu não lembro: o nome do sargento baiano que correu risco para arranjar um jeito de eu poder ficar sozinho com Dedé, que era minha mulher, na cela. Me lembrar da cara dele, do modo como ele falava, da situação que inclusive lhe rendeu uma prisão disciplinar, mas não ter guardado seu nome – isso me fez chorar.

Já esperava um interesse tão grande em relação ao filme?

Nem sei. Fiquei surpreso quando Renato e Ricardo vieram dizer que o filme se resumiria à minha entrevista, as outras coisas que seriam filmadas (Falas de Gil? De Dedé? De algum militar? Locações em São Paulo, no Rio, em Salvador?) deveriam ser deixadas de lado. João Moreira Salles – em quem os diretores, Paulinha e eu pomos toda a confiança – aconselhava que se mantivesse apenas o material filmado com minha fala. Eu tinha medo de não aguentar me ver o tempo todo na tela (em geral não gosto). Mas, vendo o ritmo que a entrevista ganhou com a montagem, me convenci. Depois vi reações entusiasmadas dos poucos amigos que assistiram. Finalmente o Festival de Veneza convidou o filme para ser exibido fora de competição.

Qual é o legado desse filme para o Brasil e para a História?

É um documento honesto e meticuloso sobre um caso que envolve o drama da construção do Brasil num detalhe conflituoso entre a arte de massas e a política no país.