Gilberto Gil foi convidado pelo blog Inconsciente Coletivo, do jornal Estadão para uma entrevista em que fala sem pudores da carreira, política e preconceito! Aos 76 anos e com vigor total após passar um período com diversas internações hospitalares em razão de problemas cardíacos e renais, o artista está em turnê do seu mais recente disco, “OK, OK, OK” e se mostrou muito sincero e direto em suas colocações!
Em Ok Ok Ok os versos dizem, “Já sei que querem a minha opinião, como interpreto a tal, a vil situação”. Qual seria esta vil situação?
Resp. Parece consensual a percepção de que o ‘espírito do tempo’ se manifesta, cada vez mais como um ‘espírito de porco’ (tomando emprestada uma expressão popular pejorativa). As coisas vão de mal a pior, a descrença e o desânimo se abatem sobre a multidão, as soluções se transformam em novos problemas mais complexos, a tentação regressiva ganha cada vez mais espaço e a queixa reverbera altissonante.
A tarefa historicamente atribuída aos formadores de opinião (intelectuais, comunicadores, artistas e tais) de produzirem uma crítica consistente da situação, fica ampliada exponencialmente. Somam-se a esses setores os milhões de anônimos, num jogo alucinante de opiniões e contra-opiniões nas redes sociais, como se houvéssemos chegado, afinal, à “Grande Babel”.
Eh disso que trata, num tom pessoalmente defensivo, a letra de Ok Ok Ok: as minhas opiniões (como as de todo mundo) seriam cada vez mais tragadas pelo buraco negro do ruído contemporâneo, daí se tornarem desprovidas de peso e contundência, quase irrelevantes.
Por aí falta trabalho, renda, poder aquisitivo, tudo. Opinião é o que não falta!
Que diagnóstico você faz do Brasil?
Resp. Numa civilização ainda não inteiramente voltada para as promessas do futuro, parcialmente entregue ao anacronismo sócio-político-econômico do passado colonial e neocolonial, tentada a embarcar num arcaico populismo sedutor sob as bênçãos de uma democracia vacilante, o Brasil teima em contrariar nossas expectativas de um novo salto civilizacional. (Recomendo a audição da canção “Outros viram” de minha autoria com Jorge Mautner).
Esboça-se, pela primeira vez em nossa história, o temor de que a redenção brasileira esteja lidando, não apenas com mais um adiamento, mas com o fantasma de uma terrível impossibilidade. Estamos com medo do futuro. Isso é inédito.
Qual sua visão histórica a respeito de nossa trajetória? Houve ditadura? Há chance de haver ditadura?
Resp. Desde acontecimentos como a Empresa Brasil resultante das articulações das Companhia das Índias Ocidentais/ Orientais/Holandesas com as elites europeias no século XVI, inaugurando, aqui, com a indústria da cana de açúcar, o que se pode considerar como o primeiro grande momento da globalização industrial (via escravidão) como acentua Luiz Gonzaga de Souza Lima em seu livro “A Refundação do Brasil”; passando por vários ciclos posteriores de tentativas de inserção do país nas modernidades várias propostas por Europa e depois EE.UU – incluídos , aí, para além das novas configurações da economia nos trópicos, os arranjos institucionais de governos do Brasil, no Império, na Velha República, no Estado Novo, na República Constitucionalista pós II Guerra Mundial.
Chegamos à Ditadura de 1964, um arranjo institucional ensejado pela Guerra Fria EE.UU/URSS, como tentativa, segundo os relatos históricos mais corriqueiros, de impedir, aqui, a implantação de uma República Sindicalista de feição soviética.
A Constituição de 1988 inaugura um novo ciclo republicano, num arranjo institucional que se denominou de Nova República. É o que temos agora, veremos até quando.
As chances de voltarmos a ter uma ditadura parecem estar sujeitas, a meu ver, mais a uma mudança de tendência internacional que propriamente ao surgimento de um novo surto do fenômeno no Brasil. Se as investidas autoritárias, impulsionadas pelo ativismo conspiratório de novos grupos de ultradireita (ou de velha esquerda) na Europa e algures, apoiados por partidos neoconservadores, governantes populistas e ideólogos passadistas, aqui e alí, como Steve Bannon e Olavo de Carvalho; se essas investidas se consolidam como uma tendência irreversível no mundo, aí sim, as chances de uma nova ditadura, por aqui, podem crescer perigosamente. Até então, a propensão libertária da maioria do povo, as miragens futuristas dos negócios e dos costumes, o aprendizado histórico das Forças Armadas, o imperativo tecnológico desbravador, o imperativo ambiental mitigador, conspiram a favor de mais e melhor democracia, assim esperamos.
O que é ser negro no Brasil?
O padrão civilizatório dominante tem sido o padrão eurocêntrico: o homem branco da Antiga Grécia, da Roma Imperial, das várias Europas, medievais, renascentistas e modernas se impondo ao mundo colonizado, submetendo os povos originários de todo o planeta ao seu modelo técnico, político, cultural e religioso. À exceção da China, da Índia e do Oriente Médio, que garantiram, em tempos passados, um certo protagonismo civilizatório aos seus povos, com reflexos no mundo, quem ditou as regras do desenvolvimento do planeta, foram os brancos da Europa.
Com a emergência das Américas e da ainda hoje subestimada África, o panorama tende a mudar. Os povos originários e os negros afro-americanos do Norte, do Centro e do Sul do hemisfério Oeste do planeta, passaram a ter um papel relevante na formação das novas civilizações. Malgrado o quase extermínio indígena e a escravidão negra, o cenário vai mudando para os povos novos (na expressão de Darci Ribeiro). Essa gente vai empurrando o mundo para uma evolução social. Eh isso que acho que é ser negro no Brasil. Como prega Jorge Mautner: “Jesus de Nazaré e os Tambores do Candomblé”.
E vai se forjando um homem “geneticamente modificado”. Novas sementes transgênicas para lavouras humanas futuras.
Eh isso que é ser negro no Brasil: fazer parte desse experimento de humanidade nova, uma vez exorcizados em definitivo, o flagelo, o martírio e a desumanização a que ainda é submetido.
O que Bolsonaro te inspira?
Resp. Tudo que me coloca diante da incompreensão me inspira a oração. Quando eu não sei o que as coisas são eu oro, medito, peço para que elas se revelem com clareza e adequação.
Já antes da sua eleição a presidente eu rezava todo dia para que ele se fizesse suficientemente compreensível para mim e para que eu pudesse também me tornar suficientemente compreensível para ele. Para que nós nos compatibilizássemos em nossas diferenças ( “Amai o próximo como a ti mesmo”).
Hoje, ele continua inspirando minhas orações no mesmo sentido.
O que Lula te inspira?
Resp. O Lula me inspira compaixão. Sempre foi assim, desde que se tornou porta voz do homem comum, em busca de uma solidariedade irrecusável, de uma irremediável comunhão com a trágica condição humana, de um entregar-se ao ímpeto de soldado destemido na luta pela quimera da emancipação.
Lula, é uma pedra bruta, não lapidável.