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Especial 2010/2019: As drag queens e o pop nacional

“Lip-sync for your life”. Talvez essa seja uma das frases que mais me vem à cabeça quando penso em drag queens hoje em dia. Evidentemente, a popularidade do reality-show americano RuPaul’s Drag Race tem total influência nessa sequência de pensamentos. Ainda assim, não é de hoje que muitas dessas rainhas vão além da famigerada dublagem. Elas são donas de grandes vozes, excelentes composições, performances invejáveis e criações artísticas de alto nível. Aqui no Brasil não é diferente, nos últimos anos assistimos as nossas queens desfilarem seus talentos no mainstream e de pouco em pouco conquistarem um espaço cativo no mercado musical, sendo requisitadas e respeitadas pelo seu ofício.

Drags

Foto Pabllo Vittar: Ernna Costa / Foto Aretuza Lovi: Duh Marinho / Foto Glória Groove: Rodolfo Magalhães / Foto Lia Clark: Olavo Martins

Hoje em dia fica difícil iniciar qualquer papo de drag queen no Brasil sem mencionar Pabllo Vittar nas primeiras linhas. Pabllo está longe de ser a primeira queen brasileira, mas certamente foi a primeira a alçar grandes voos na carreira. Certamente quando a drag queen maranhense apareceu com o EP “Open Bar” e começou a fazer um barulho na cena pop em 2015 com sua versão para “Lean On”, do Major Lazer, nem a própria poderia imaginar o desenrolar da sua história na música e a sua importância para o movimento.

“Pabllo Vittar – além de ser minha irmã e uma das bichas mais queridas do mundo – é um tesouro recheado de identidade nacional e potência mundial. Ela engloba e representa diversos tipos de superação que parecem contar cada pedacinho do que é ser uma legítima bicha, afeminada, NORDESTINA! Ao mesmo tempo que casa isso com referências pop que brindam a infância e adolescência que parece que vivemos junto dela. É um trabalho tão polivalente e um sucesso tão inexplicável, que acaba impactando em toda uma indústria e toda uma nova safra de artistas que passam a se entenderem também como uma narrativa possível de existir.” – Glória Groove

“A Pabllo não só abriu portas, mas as escancarou. Ela trouxe todas as manas de mãos dadas, foi um divisor de águas e uma revolução na nossa sociedade, cultura e arte. Sou uma pessoa muito grata em conhecê-la e ver tudo isso acontecer, também por vir de outra geração onde as pessoas tinham uma outra visão de Drag e hoje não mais; estamos em todos os lugares. A Pabllo é a grande virada de chave para tudo isso, só tenho muita gratidão. Ela não revolucionou apenas o mercado nacional, mas o mundo, mostrando que Drag é arte e cultura.” – Aretuza Lovi.

“Todo mundo subiu junto, todo mundo deu um passo. O dela foi maior, é claro, mas ela ajudou a todas. Eu digo todas, porque não foi só com as cantoras, mas todas as drag queens do Brasil. Tenho plena consciência que ela foi um divisor de águas. Ela entrou e está na casa do brasileiro que não consome drag, que não consome cultura LGBTQIA+.” – Lia Clark.

Glória, Aretuza e Lia têm toda razão. Com as portas do mercado escancaradas por Pabllo Vittar, que chegou e peitou com muita bravura uma série de críticas pesadas, o caminho para as rainhas do entretenimento ficou um pouco mais pavimentado aqui no Brasil. Após os lançamentos seguintes de Vittar, os álbuns “Vai Passar Mal” e “Não Para Não”, os olhos do meio musical e de todo o público se voltaram para as drag queens, para a cultura drag – do acrônimo “Dressed Resembling A Girl”. Uma arte que é datada no início do século XX, mas para nós brasileiros ela nunca esteve tão próxima de todos, tão presente.

“A arte drag é a minha casa. É a expressão artística que mudou a minha vida, porque me permitiu me enxergar de verdade. Quando comecei a me montar, já sabia que poderia fazer coisas incríveis unindo drag e música, mas não tinha certeza da validação nem dos meus amigos, quem dera do resto do mundo! É realmente surreal ver onde chegamos,” conta Glória Groove.

Assim como disse Glória, a arte drag aliada à música pode mesmo chegar a lugares impensáveis. Hoje o papel desempenhado por esses artistas vai muito além do entretenimento e não há forma mais rápida e eficaz de passar mensagens importantes se não via arte. As canções das nossas queens, assim como suas performances e onipresença têm uma importância sem precedentes.

“Tenho consciência daquilo que represento e de quem eu sou. Ser uma drag no palco já é um ato muito representativo. Acho importante usar esse espaço também para termos um mundo melhor. Esse deveria ser um compromisso de qualquer pessoa, esteja no palco ou fora dele.” – Pabllo Vittar

“Hoje já consigo entender plenamente o quão importante e representativa é a nossa ascensão, principalmente neste cenário político e social. O medo já deu lugar a sensação de pertencimento e a vontade de fazer a diferença.” – Glória Groove

“Eu comecei a ter noção que minha arte é um ato político muito tempo depois de fazer sucesso. Foi apenas quando as coisas foram acontecendo, com a censura que eu sofri, com as mensagens que recebo dos fãs. Isso me motiva, pois além de ser um trabalho que amo fazer, ele muda a vida de outras pessoas. Eu acho que nem sei a grandeza disso e às vezes me perco aqui dentro, mas fico muito feliz.” – Lia Clark.

“Nós sentimos o peso disso, nós que estamos na frente, todas as meninas que estão na frente dessa representatividade de uma comunidade. É uma responsabilidade tremenda dar a voz a muitas pessoas, comprar a briga, defender e buscar o direito delas. Somos muito atacados, mas ser drag é resistir, ser da diversidade é resistir e resistiremos até o fim.” – Aretuza Lovi

Representatividade talvez seja a palavra chave para o trabalho que as drag queens brasileiras vêm fazendo. Pabllo, Aretuza, Glória e Lia ganharam um espaço no panorama musical nacional e revelam-se todos os dias como espelho de muita gente. Ainda assim, nos outros quatro mil cantos do Brasil, outras drags também vêm fazendo o mesmo dentro de seu espaço. Nininha Problemática, a primeira drag queen do pagode baiano, Potyguara Bardo com sua extensão vocal de tenor vem chamando atenção diretamente de Natal, assim como Kaya Conky que também é do Rio Grande do Norte e traz com ela uma irreverência sem igual. Samira Close, a queen que nos foi apresentada pelo universo de games, Mia Badygal, Kika Boom, Thereza Brown, Lamona Divine… Os nomes são muitos, é só procurar e perceber o quão diverso é o trabalho desses artistas. Não existem amarras ou livro de códigos, elas são plurais.

Diferente das músicas das drag queens estrangeiras – que por muito tempo e em sua maioria tratam do próprio universo queer e se assemelham no que diz respeito às produções quase sempre pautadas em música eletrônica, dance e disco – as brasileiras saem na frente no que tange a musicalidade. Vamos do funk ao forró, passando pelo samba, arrocha, rap, axé music e tudo isso pincelado com o melhor da música pop – gênero ao qual elas estão mais associadas e no qual hoje têm uma influência palpável.

O pop nacional teve um crescimento exponencial nos últimos anos e o sucesso das queens dentro deste universo não é mera coincidência. Drag é pop. Pop no sentido que os fãs mais xiitas do gênero gostam de atribuir ao mesmo. Elas se cercam de tudo desta cena, de cabo a rabo: visual, coreografia, beleza, videoclipe, live performance. Independente do que cantem ou da faceta e personalidade artística de cada uma, todas entregam o pop. Absolutamente todas.

“Eu fico muito feliz com o crescimento do nosso pop nacional. Sempre acreditei muito e apostei todas as minhas fichas. Me lembro de conversar com um empresário e ele falou que o pop não iria acontecer. Está mais do que provado que o pop nacional aconteceu de forma incrível, com muita qualidade, com muitas pessoas talentosas e está vindo uma geração mais incrível ainda para somar e as drags escreveram o movimento, o Drag Music se estabeleceu e fico muito feliz em saber que daqui a alguns anos vou olhar para trás e ver que meu nome está lá e fez diferença na história musical do país.” – Aretuza Lovi

“Eu lembro quando minha playlist não tinha uma música do Brasil! Eu não escutava música brasileira e hoje em dia eu consumo muito mais a música brasileira do que a internacional. É muito bom ver que isso está acontecendo aqui. Eu me sinto uma gay representada, que sempre ficava idolatrando os artistas internacionais e agora tenho no meu país artistas que posso acompanhar a carreira, o desenvolvimento, os lançamentos, as eras, as ideias e o melhor poder ir em shows dessas pessoas que estão rodando o Brasil. É muito bom também ver que nosso som está sendo exportado; a Anitta e todas as outras meninas dando um passo aqui e outro ali na carreira internacional, eu fico feliz.” – Lia Clark

Como Lia apontou, o nosso som está sendo exportado junto com os nossos artistas. Vale lembrar que no ano passado Pabllo Vittar foi a primeira drag queen e primeira brasileira a se apresentar no Europe Music Awards, a premiação da MTV na Europa, onde cantou o seu primeiro single internacional “Flash Pose” e ainda saiu premiada como a Melhor Artista Brasileira de 2019. Na última semana, junto com Anitta, ela também foi confirmada com uma das atrações do lendário festival californiano Coachella.

“Sinto que o âmbito pop brasileiro tem se moldado a partir de uma tendência de artistas com extrema autenticidade, recorte social/político e provocação visual. Muito dificilmente tem conseguido se estabelecer algum artista com discurso antigo, vão e repetitivo.” – Glória Groove.

O perfil provocativo dos artistas em destaque abordado por Glória e principalmente o perfil provocativo da drag queen é também o que traz a dificuldade para a mesma. Mesmo que neste momento as drag queens brasileiras estejam em um novo patamar e sendo recebidas pelo grande público com mais seriedade, ainda existe aquela parcela de audiência arredia à elas pelo simples fato de serem drag queens.

“As drag queens podem ter entrado muito mais no imaginário popular, mas ainda somos uma contracultura! Naturalmente haverão pessoas contra nosso som, nosso comportamento, nosso estilo, nossa expressão… Tudo isso faz parte do grande experimento social que é ser uma drag queen – principalmente no Brasil!” – Glória Groove

“Ainda vivemos muita resistência em diferentes assuntos. Mas também é verdade que hoje temos uma diversidade muito maior na música, o que permite tantos artistas e drags estarem se consolidando em suas carreiras.” – Pabllo Vittar

“Existe uma grande resistência ainda, mas estamos nessa luta para a quebra dessa barreira, para que as pessoas nos reconheçam com igualdade, que respeitem ainda mais a nossa arte. Estamos conquistando nossos espaços aos poucos, não só na arte drag, mas em toda a diversidade. Nosso país é muito preconceituoso, todo mundo sabe, mas seremos resistência, não iremos desistir. Estamos nessa luta com muito amor, muito respeito para garantirmos nosso lugar ao sol e mostrar nossa arte com muita dignidade.” – Aretuza Lovi

Fato é que mesmo sendo contracultura, as drag queens são uma realidade. Tudo o que já foi conquistado até aqui dificilmente será subtraído, dificilmente haverá marcha ré para esse movimento, ainda bem. Nós que somos público, fãs, espectadores, só temos a ganhar com o desenvolvimento dessas legítimas rainhas, que merecem não só atenção ao que produzem como absoluto e total respeito.

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