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ENTREVISTA: Rashid aborda dilemas sociais do Brasil “underground” em nova música

Foto: Kleber Oliveira

No dia 20 de Abril, chegou às plataformas digitais “Pílula Vermelha, Pílula Azul (Incidental: Banditismo por uma Questão de Classe)”, nova aposta do rapper paulistano Rashid. Com referência ao filme Matrix no título, a canção prenuncia uma nova era do artista de 34 anos, que é dono de uma das “canetadas” mais afiadas do rap nacional, além de propor uma reflexão não-óbvia sobre a coletividade, seus movimentos e questões.

Créditos: Rafael Brasil (arte) / Kleber Oliveira (foto)

A música produzida por Grou – antigo parceiro de trabalho de Rashid – conta ainda com elementos de “Banditismo Por Uma Questão De Classe”, canção que faz parte do disco “Da Lama ao Caos” (1994), do Nação Zumbi, e também com a tradução de um verso de “The Message“, faixa do grupo Grandmaster Flash and the Furious Five.

Imerso em camadas tão profundas quanto suas referências, Rashid entregou também um videoclipe, dirigido por Levi Riera, que mostra um Brasil underground (em crise social e moral) e com ares de cyberpunk. Quase uma distopia, se não fosse real. Em um bate-papo com o POPline, o rapper destrinchou suas inspirações, descreveu esse país, retratado em sua obra, e reagiu à possíveis analogias criadas a partir de “Pílula Vermelha, Pílula Azul“.

POPline: Queria começar falando da música e perguntar de como ela surgiu. Qual foi a sua ideia inicial? Qual foi o primeiro passo para o surgimento dessa letra?

Rashid: A ideia inicial, cara, na real, ela partiu de uma visita do Grou, que é o produtor da faixa, né? Ele veio me visitar e a gente já trabalha junto desde 2012 e 2011 e só que fazia um tempo que a gente não conseguia produzir nada juntos, por falta de oportunidade. Ele veio me visitar e ele começou. A gente começou a ouvir um sons e tal e começamos a brisar. E aí eu falei pra ele que eu estava com uma vontade, já fazia um tempo, que era de fazer uma música que pudesse fazer parte da trilha sonora do filme Akira e ele pirou na ideia porque gosta dessas coisas tecnológica, desse tipo de música, que tem um timbre mais moderno, mais futurista e tal. Ele começou a pesquisar os timbres e na hora já se desenhou uma melodia e a gente começou a rechear essa melodia depois de elementos percussivos e tal. E na hora já me veio essa viagem assim, de que eu acho que essa é a parada da música. Tá ligado? Quero mergulhar no Monte do Akira, mas misturar com outras coisas. E aí veio a coisa do Matrix, veio a coisa das pílulas. E quando surgiu essa ideia de dividir a música em personagens, como se dois Rashids, ali, interpretassem uma coisa, mas são duas visões diferentes de uma mesma realidade, dois extremos de uma mesma vida. E eu falei “é isso, cara”. Nessa hora, me veio o estalo de fato. A parada é a pílula vermelha e a pílula azul. E são duas interpretações baseadas nessa filosofia por trás dessa coisa das pílulas no filme Matrix e mais um monte de outras coisas aí que tem nesse caldeirão de influencias da música. Por exemplo, o refrão que é inspirado na música do Grandmaster Flash, The Massege, que é “Don’t push me ‘Cause I’m close to the edge”, é uma forma de prestar uma homenagem. É a mesma coisa com a citação ao Chico e tudo mais. Essa música virou um grande caldeirão de referências e nenhuma delas ali por acaso.

POPline: Então era até outra dúvida que eu tinha o visual meio que surgiu já junto com a letra. Os ensaios foram vindos, foram vindo.

Rashid: Assim, a real é que só depois que a música estava pronta, que eu fui falar com o diretor, o Levy Vieira, no caso. Só que a coisa estava tão bem desenhada e estruturada dentro das referências. Cara, o mood, ele estava tão pronto. Cara, isso mistura. Akira, Blade Runner, Cyberpunk, Matrix. Essa é a parada. Mas vamos nessa. Nesse tipo de futuro gueto é um futuro que é gueto, não é um futuro, não é aquela coisa clean, carro branquinho do ano, sem barulho e tal. Não é um barato, é um futuro underground mesmo, uma coisa meio free style, gambiarra e tal. Vamos aí. E como chegou para ele? Eu acho que estava tão bem estruturado que ele conseguiu desenvolver a narrativa muito bem ali dentro da mesma ambientação. Assim, sem muita dúvida. Ele também é um cara que adora essas referências aí que estão na música. Eu acho que foi um caminho. Não sei. Não sei se foi fácil, mas foi menos difícil pelo menos encontrar a ambientação.

Foto: Kleber Oliveira

POPline: E você estava falando da citação ao Chico Science e como essas letras continuam fazendo sentido mesmo muito tempo depois. Nesse sentido, você acredita que mostra que o país regrediu ou que nunca avançou?

Rashid: E tem uma complexidade aí no tema, né, cara? Porque, assim, primeiro: a genialidade do Chico e da Nação Zumbi. Para mim, o som que eles tiravam e que a nação continuou tirando depois me soa muito como isso mesmo a trilha sonora de um universo do ‘Akira’ ou do ‘Blade Runner‘. Então, meio que foi natural, meio orgânico, trazer essa citação a essa letra do Chico pra essa música, até porque eu estava mergulhado ouvindo esse disco, “Da Lama Ao Caos“, me serviu muito de referência, inclusive um pouco da minha forma de escrita foi inspirada em como o Chico escreveu algumas coisas, um pouco mais jogado. Geralmente, eu sinto que minhas letras são um pouco mais as coisas formais, um argumento completo, e nessa, as coisas ficaram um pouco mais jogadas ao vento, um estilo diferente de poesia. E isso foi inspirado, inclusive, nessa técnica de escrita do Chico e tal. E aí a gente tem o lance de que as letras são muito atuais, assustadoramente atuais, cara. E eu passei um tempo ouvindo esse disco, caminhando, andando de bike e olhando assim. Sabe o eu gosto disso, de ouvir a música enquanto estou olhando para os lugares.
E, cara, como isso descreve a nossa realidade desse momento? Tá ligado. É várias coisas que a gente viveu durante os últimos anos. É incrível a riqueza da arte desses caras, a riqueza da arte brasileira. E é cara, mas ao mesmo tempo, a gente tem o 80 da coisa. A gente viu oito, mas o 80 é justamente o quão o nosso país está atrasado, né? Eu acho que a gente avançou. A gente teve alguns avanços, sim, em algum momento. Algumas coisas mudaram e eu acho que a minha geração de artistas, especificamente, dentro da música rap, o nosso crescimento foi no momento em que o Brasil tinha um pouco mais de acesso às coisas. O fato de podermos ter ter rodado o país viajado para vários lugares, sabe isso foi graças a um momento de ascensão que o Brasil teve. Isso é inegável. Então, a gente teve. E aí o que se pode discutir é o quão avançado foi esse avanço, né? É isso aí? Sim, mas houve um momento. E a minha geração é reflexo disso. Eu observo até que o funk ostentação, de certa forma, era um reflexo disso, de uma ascensão social, econômica.

Tá ligado e agora a gente vive um retrocesso absurdo. A gente tem uma coisa da memória do povo que ela é maleável, assim. As pessoas esquecem das coisas muito fácil. De acordo com o que você vai mostrando para elas, então, a narrativa é facilmente manipulada, de certa forma, pela grande mídia, sendo jogada na cara das pessoas o tempo inteiro. As pessoas esquecem e ‘é tudo a mesma merda desde sempre’. Não, mas a gente teve momentos daqui, cara. A questão é que agora a gente andou tão pra trás que até esses momentos se tornaram um barato distante na nossa memória. Então, a gente evoluiu. Poderia ter evoluído mais, mas evoluímos e agora a gente vive um momento de retrocesso. A gente está num buraco que é desesperador e uma realidade triste. As cenas que a gente viu aí, meses atrás, pessoas pegando ossos em caminhão e tal, tá ligado. Isso é um bagulho absurdo. E aí você vai ouvir “Da lama ao caos” e parece que o disco poderia ser eleito disco do ano de 2021.

POPline: Também pensando na sua música, que chega com esse verniz, de uma escolha entre a pílula azul e vermelha, e em um ano tão simbólico para a política nacional. Eu queria saber se é possível fazer uma analogia com o momento que a gente vive, no sentido de ser um ano eleitoral e que muita água vai rolar nos próximos meses. É algo que você pensou?

Rashid: Cara, eu imaginei que essa analogia fosse criada em algum momento. Não é uma coisa que eu pensei não. A dualidade, sim. Mas é que é curioso como essa foi a briga, a briga eleitoral no nosso país durante bons anos, justamente, o azul e o vermelho, os Bloods & Crips. Aqui, a gente tinha PT e PSDB durante um bom tempo numa disputa, mas nesse momento o outro lado nem nem é mais azul, necessariamente. Nem sei exatamente qual era então. Mas eu imaginei que as pessoas fossem criar essa analogia ao Rashid fazendo uma apologia lulista. Eu imaginei mas é isso, pode ser desenhado, pode ser pensado. A arte está aí pra ser interpretada desse jeito. E, nesse momento, o que eu quero mesmo é que essa parada, essa mensagem da busca por uma verdade, que existe na música, é que ela que transcenda, tá ligado? É ela que entre na cabeça das pessoas. É uma verdade. E aí entendo essa mensagem como, mano, a última eleição foi vencida à base de mentiras, então, que a verdade venha à tona de fato e sem sem o jargão do pessoal que o próprio pessoal estava usando aí, né? Os Bolsonaristas estão aqui já falando diretamente dessa coisa de ‘conhecereis a verdade’, cheios de fake news, tá de brincadeira…

Então, assim, “Pílula Azul, Pílula Vermelha” pode ser interpretada como uma música que tem esse cunho, mas não foi pensada para isso. Foi pensada para pra vida toda, tá ligado? Não foi pensado para esse momento assim. Nunca pensei uma música para um momento eleitoral. Eu acho que o que a gente tem de mais ilustrativo para esse caso da música é uma eleição tão crucial para a história do Brasil e uma Copa do Mundo tão próximas uma da outra. O que vai ser mais levado em conta quando estiver próximo? Esse é o lance, tá ligado. Mas já deixei meu recado aí. Por favor, família, tire seu título. Se você for jovem, vá. Primeiro você tira o título, depois a gente tira o Bolsonaro. Vamo que vamo!

POPline: Falando a nível pessoal, o quão próximo você é nesse universo cyberpunk? Você conheceu isso recentemente ou é uma coisa que vem de sua adolescência?

Rashid: É uma coisa que vem da adolescência, mistura com outras coisas que vêm agora, mas são referências variadas. Porque tem essa ligação muito forte com o ‘Akira’? É um filme, é uma obra prima. É uma coisa que quando eu assisti a primeira vez não entendi nada. Só fiquei apaixonado ali pelo aquilo que eu estava vendo. A segunda, terceira, quarta. Eu devo ter assistido umas oito vezes, sei lá. E aí, até o momento que você manda esse barato é absurdo nessa obra incrível. Tá ligado e inclusive eu. Deveria. Fiquei louco quando saiu a coleção em quadrinhos e eu fiquei louco pra comprar ali os mangás, mas acabei não pegando. Mas eu sou apaixonado por esse universo e aí tem o próprio ‘Blade Runne’r, que é uma referência. Acho que o Matrix tem uma textura diferente, mas ao mesmo tempo ele tem momentos porque tem esse momento do pessoal ali do Morpheus. Tá ligado que é essa coisa meio underground, de tá ligado. E é esse esse mood que é o que nos interessa, aqui, falando dessa música. Mas tem várias outras coisas que eu chapo bastante. E aí, por exemplo, coisas mais recentes. Você tem o próprio jogo ‘Cyberpunk 2077’, que teve seus Lars e casa, assim, mas a ambientação é muito louca e tem um anime chamado ‘Dorohedoro’, que tem um universo meio futurista, que misturam um pouco de magia também. É um bagulho absurdo aquela ambientação. Então tem muitas coisas assim. Tem, por exemplo, a série ‘Love Death + Robots’. Tá ligado? Que é absurda as ambientações dos episódios, cada episódio, um história. Então, assim eu vou catando em tudo. Não vou catando em tudo, então não necessariamente tem. São referências só de uma época ou de outra. Eu vou catando em tudo assim. Vou deixando as coisas surgirem assim. Mas é uma coisa que eu estou que eu tenho. Eu gosto, né? Obviamente, tem pessoas que entendem muito mais do que eu, desse tipo de universo e desse tipo de textura, de trabalho, de ambientação. Mas eu gosto. Estou inteirado em algumas coisas ali que eu gosto bastante.

Foto: Kleber Oliveira

POPline: Eu estava lendo que essa música prenuncia, o que você definiu, como uma nova variante do Rashid. Quais são as características dessa nova variante? O que você pode adiantar pra gente.

Rashid: Eu acho que essa música desenha muito bem esse primeiro passo, porque é uma música em que acho que as referências do Rashid estão muito afloradas. Você ouve e você pega no título, você pega no clipe, você pega na música sem necessariamente aquela coisa de precisar olhar o que eu estou falando na letra, sabe? Então, deixei as coisas extrapolarem para além da técnica de escrita. E isso tem me feito muito bem no sentido de que eu percebo o meu trabalho, que está sendo feito nesse momento, muito mais rico, justamente por permitir que as minhas referências e influências da vida toda aflorassem de uma forma muito mais objetiva. Tá ligado? Eu sinto que até um pouco tempo atrás – e aí não tem coisa de se é bom, se é ruim -, mas eu sinto que até o último disco, se a gente parasse para trocar ideia e você me perguntasse minhas referências musicais e tudo mais, talvez aquilo não estivesse tão explícito na música que você ouve do Rashid. Talvez você não fosse conseguir catar o Cartola ali. ‘Onde está o cartola? O que Rashid falou é o Bob Marley e o Djavan?’, tá ligado? Mas eu sinto que todas essas coisas, nesse meu novo momento de composição, de produção e tudo mais, elas estão muito mais presentes. E não necessariamente só porque o Rashid está falando de tal coisa ou de coisa. É possível captar no play, se eu tirasse a letra de lá, vocês que estão ouvindo, captariam já quais são as referências, o que tem aqui, qual é a estética e tal. Então acho que é um novo momento, mais rico de referências, mais rico de influências. Mas é um novo momento em que eu estudei bastante, tentei aproveitar – sem romantizar o momento da quarentena -, mas eu tentei aproveitar os momentos de sanidade que a gente tinha, aquele momento de um momento que está todo mundo muito doido bater na nave. Tem momento que tá todo mundo fazendo pão. Tinha um momento que estava todo mundo perdido, mas os momentos de sanidade eu tentei aproveitar. Para agregar coisas, para estudar. E aí eu cheguei em algumas reflexões e assim comecei a produzir coisas que de fato vão mudar a forma como Rashid de coloca as coisas na rua. Tá ligado? Então essa é a nova fase. Acho que o Rashid de agora tem para oferecer uma nova experiência sonora para as pessoas e para além do que a ‘pílula vermelha pílula azul’ demonstra. Mas aí também não posso falar, porque se eu falar é spoiler demais. Mas é um momento de fato. Eu soltei, inclusive, um vídeo falando disso e falei é o momento de uma nova experiência. E, de fato virá uma nova experiência sonora, auditiva, sem sensorial. Para ficar mais bonito, começa agora com esse Rashid.

POPline: Você pretende lançar um novo álbum em breve?

Rashid: Pretendo, pretendo. Mas é isso. Vou ficar por aqui (risos)

Foto: Kleber Oliveira

POPline: Uma coisa que eu achei bem interessante é a ideia que vocês tiveram, no videoclipe, de colocar duas pessoas de classes sociais diferentes, mas ambas homens pretos. Tem uma razão para isso?

Rashid: Tem uma razão, sim. Primeiro, porque já começa o processo de uma desconstrução porque existem pessoas pretas, abastadas, que têm dinheiro, e infelizmente é a minoria e real minoria, sim. Porque pessoas pretas no Brasil não são minoria, mas são minoria as pessoas pretas abastadas dentro, aí sim são uma minoria, infelizmente. E existem pessoas pretas também que são idiotas como pessoas brancas, idiotas e como homens e mulheres. Tá ligado? Isso existe pra todo lado. A questão do clipe de colocar duas pessoas pretos primeiro começa, aqui, com a gente traçando um universo onde pessoas pretas são normais em qualquer papel – e isso é uma luta de tempos que provavelmente as pessoas já estão cansadas de ouvir falar, mas é uma luta que a gente precisa continuar travando. Chega de pessoas preta só como empregado, como faxineiro, como motorista, como segurança. E, ao mesmo tempo, a gente coloca em vários aspectos. Tem pessoa preta, vilã e tem a pessoa preta… Na real, ali [no clipe], não é nem o caso de vilão e herói, mas são só visões diferentes. Então, tem pessoas pretas em todas as pontas da sociedade. O que a gente quer colocar, aliás, é o que a gente quer desenhar e é o que a gente quer naturalizar, normalizar essa visão de um universo cinematográfico onde as pessoas pretas estejam em qualquer ponta da sociedade, ok. A partir daí, o que o clipe também tenta demonstrar que a gente tem situações ali: tem o indivíduo e o coletivo, que várias vezes são uma mesma treta dentro da cabeça de uma só pessoa e de uma só pessoa preta.

Muitas vezes você fica entre o sucesso individual e o progresso coletivo, entre a causa e o indivíduo. Em muitos momentos você fica dividido, porque, em um momento, a sociedade te puxa para cá, o consumismo, o capitalismo e como as coisas têm. Você precisa ter para ser e você precisa mostrar que tem. E você precisa estar bem o tempo inteiro na internet, você precisa aparecer o mais bonito. Se você for preto, tem que ser 30 vezes mais bonito para aparecer, para as pessoas te chamarem de bonito. E ainda vão falar que você é um negro bonito ou uma negra bonita, entendeu? E então tem esse lado e o outro lado da causa que acaba sendo representado por um mano que está na rua, mas o mano que está na rua e que está consciente, ali, e tudo mais. Eu percebo um personagem que está desperto de determinadas ilusões e não que para você conhecer a verdade, você tem que viver numa determinada situação, que pode ser degradante. Tá ligado, mas é uma figura de linguagem e é um método de discurso.  Você precisa ser assertivo para comunicar isso. Então, aqui a gente tem um mano que teve uma ascensão econômica e aqui a gente tem um mano de rua. Só que é o Mano que disse que era para ter todo o acesso ao conhecimento está imerso numa ignorância. E esse Mano que está em situação de rua, pelo contrário, está com a cabeça onde deveria estar, com sensatez, com consciência e com humanidade.

São várias camadas, mas eu acho que o lance principal, para mim, a minha experiência sensorial principal com o clipe é assim, cara. Quantas vezes eu já estive no meio dessa treta comigo mesmo, tá ligado? Para que lado eu vou? Eu acho que essa é a parada. Tanto que a gente tem momentos que ligam os dois personagens e, para o final da noite, a gente tinha pensado em coisas mais fortes, mas a gente sabe que o algoritmo às vezes poderia nos atrapalhar. No final da noite, estão ambos com os olhos arrebentados de terem tomado uma coronhada. No final do dia, você é preto, meu parceiro, tá ligado. Então, tem esse choque de realidade e aí fica. A única pessoa que passa ilesa por tudo nessa experiência do clipe é a nossa garota branca blogueira. Então a gente tem várias várias mensagens dali. É a única pessoa que passa ilesa entre a nossa treta. A gente está aqui tentando se encontrar. O clipe tem muitas mensagens, cara, eu quero que as pessoas desvendem também, mas essa é a parada principal para mim. Na real, eu falei umas cinco coisas e falei ‘essa é a parada principal’. Essas aí são (risos).

Foto: Kleber Oliveira

POPline: Essa também pode ser uma analogia para esse debate que perdura por anos na música rap – da ascensão do trap e de outros estilos que não tenham um cunho tão político-social e abordam outras coisas, mas que sabemos que também tem sua mensagem política implícita?

Rashid: Eu acho que em alguma instância também esta ligado, mas não é isso. Não é esse o objetivo, porque você trava um embate ali entre pessoas do meio de um mesmo movimento, sabe, do mesmo gênero musical que ainda é marginalizado, querendo ou não. Os artistas de Trap e vários deles têm números estratosféricos, mas não estão nos mesmos lugares, nos mesmos palcos ou espaços que artistas pop ou artistas de sertanejo e por aí vai. Não é essa a parada, talvez num nível mais superficial. O que para nós é o rap de verdade e o trap? Na real, o que o rap de verdade é um rap que você consegue ouvir. Tá ligado? Você consegue ouvir e, de verdade, está ali. Ele existe. Então não é essa e não é essa parada da música principal. Mas existe, sim, uma crítica ao que seria um lifestyle vazio, a um esvaziamento, a uma plastificação da cultura. Essa crítica existe e é uma coisa contra a qual eu luto. Mas isso eu acho que isso está muito além do discurso, porque você falar de festa, de sexo, falar do que do seu estilo de vida na música, isso não é, não é indigno, tá ligado. A música faz isso há anos. A gente tem gêneros e gêneros musicais que fazem isso há séculos, na verdade. Então, para mim, isso não é indigno. Não tem nada a ver com isso.

Eu acho que a parada é, de fato, como você vive, como você enxerga as coisas, a sua vida. E assim é só isso? E a festa que você está descrevendo? Essa é a festa. Essa festa, de fato, está conectada com a realidade das pessoas que te escutam hoje? Ninguém tem a obrigação de ser político, de levantar bandeira nenhuma. Eu não acho que ninguém tem a obrigação de nada. Eu escolhi, então eu seguro esse B.O. E quem escolher também segure seu B.O. E cada escolha é uma renúncia. Então, se você escolhe falar sobre, [por exemplo], eu só quero ser um artista que vai falar só de amor. A partir de agora, só vai ter Rashid ‘Pipa Voada’, Rashid ‘Sobre o silêncio’, ‘Vício’ e ‘Eu te avisei’. É isso? Então, Rashid segura seu B.O. porque vão vir coisas com isso. Cada escolha tem uma sua dor e sua delícia. Tá ligado? Então, assim, filosofando bastante sobre sua questão, não tem a ver com isso diretamente, mas ao mesmo tempo, fica uma sugestão – não é nem uma crítica, uma sugestão para um convite à reflexão – de que, como está a nossa realidade agora, nesse momento? Será que a gente está conectado com as pessoas mesmo, com a realidade das pessoas? Ou será que a gente perdeu o contato totalmente com as pessoas que fazem a nossa música viver de fato também?

 

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