Tudo começou com um “acidente de percurso”, um encontro não planejado de uma advogada no ramo do entretenimento. Raquel Lemos atuava na societária e dedicada às empresas de tecnologia no Brasil, ou seja, na implantação dessas estruturas internacionais no país, durante uma década também foi professora em cursos como sistemas de informação, administração com ênfase em tecnologia e banco de dados. Os “futuros” a interessavam.
“Futuros” esses como a regulação de telecomunicações. Raquel conta que, à altura, o assunto pulsava no ambiente acadêmico.
“Creio que já tinha uma fagulha ali para meu encontro com o mercado da música, o interesse por inovação. Foi uma questão de tempo até esse encontro com o mercado musical, em um momento de transição para o digital, em 2006. Quando entendi essa convergência, estacionei na área autoral porque compreendi que a tecnologia pavimentava esse encontro entre conteúdo e publicação ao usuário”, disse Raquel Lemos, sócia-fundadora da Lemos Consultoria.
Ao cruzar os seus caminhos com o mercado musical e entrelaça-los com ele, Raquel Lemos, sócia-fundadora da Lemos Consultoria, em entrevista ao POPline.Biz é Mundo da Música conta sobre sua trajetória profissional e importância da consultoria jurídica no mercado da música e do audiovisual.
Leia Mais:
- Entrevista: ‘Qualificar o mercado é uma tarefa de longo prazo, que deveria ser uma política para o setor’, diz Dani Ribas
- Entrevista: ‘Hoje o estúdio é considerado um templo sagrado da música’, diz Constança Scofield, diretora da Toca do Bandido
- Entrevista: ‘As métricas têm seu valor, mas elas não podem se sobressair em relação ao artístico’, diz Renan Augusto
POPline.Biz: Hoje você é sócia da Lemos Consultoria. Como funciona a atuação da empresa? Em quais momentos um artista ou agente do mercado pode buscar pelos serviços que a sua companhia oferece?
Raquel Lemos: Temos duas unidades de negócios. A Lemos Consultoria é vocacionada à assessoria jurídica para propriedade intelectual, e cuidamos de todas as fases de maturação da criação autoral: desenvolvimento/concepção, engrenagem de investimento, modelos de negócios, etapas de produção e até a cadeia de distribuição.
Um espaço estratégico, dedicado à construção de ativos intelectuais, que tem arquitetura contratual e consultiva como seu alicerce. A produção de conteúdo, em qualquer linguagem e formato, nos interessa como advogadas consultivas, desde a realização de festivais musicais, product placement musical, gestão de canais de YouTube, produções híbridas para marcas, séries para plataformas de streaming, cinema, assessoria para plataformas de distribuição, podcasts, agregadoras, projetos que envolvam IA na sua realização…
Enfim, se tem elemento de criação ou de distribuição, estamos na nossa área de competência – mídias e produção de conteúdo. Nosso papel é aumentar a imunidade jurídica dessas criações e projetos e potencializar o alcance da PI, porque cada construção envolve uma cadeia de direitos e essa proteção está além da elaboração de bons contratos, exige a compreensão do DNA de cada criação e sua aptidão para o mercado.
Já a ARTIS Cultural, nossa segunda unidade de negócios, tem como foco os serviços de sincronização musical, uma ponte entre o audiovisual e a música, além de forte atuação consultiva em temas de leis de incentivo fiscal. Isso inclui desde a redação de editais para o setor privado — na construção de políticas culturais para marcas e compliance aplicado às políticas de patrocínio (tomadores de decisão) — até a assessoria às produtoras independentes na gestão dos seus próprios projetos incentivados.
Creio que o timing para a contratação de serviços consultivos está sempre vinculado ao desenvolvimento da ideia, à fase de maturação dessa pelo criador, investidor ou executivo. É no começo, lá onde as coisas germinam, que a assessoria consultiva e estratégica acontece com maior eficiência.
POPline.Biz: Em recente entrevista, você apontou a dificuldade de entendimento básico em relação ao mercado musical, das agências de publicidade. Como você encara esse desafio diário? Quais cases de sucesso dessa relação entre agência-Lemos Consultoria, que você poderia destacar?
RL: De fato, é um desafio esse entendimento pelas agências de conteúdo e pelas marcas quanto ao ecossistema fonográfico.
Primeiro, porque o mercado fonográfico tem nuances técnicas sobre o aspecto autoral que a indústria da encomenda publicitária desconhece, por exemplo, a condição MFN entre coautores/editoras, a necessidade de autorização para gravação de versão, o conceito de titular e autor, o regime de coautoria, a identificação da versão fonográfica a ser negociada para uma ação publicitária, entre outros. Tudo isso que nos parece tão trivial, é um campo desconhecido para agências e marcas, claro que algumas já estão mais maduras no caminho, mas não é a regra.
Além disso, as agências de publicidade ou de conteúdo experimentam um turnover sensível nas suas equipes executivas/planejamento, então, essa rotatividade não permite que o conhecimento se solidifique. Conhecimento e know-how são legados. E a criação de conteúdo ainda está muito concentrada na própria criação (roteiro da ação/script), na aprovação pela marca, na assinatura do diretor e no cronograma.
A autorização de uso da música que compõe a narrativa da marca passa a ser tarefa de um assistente de produção que nem sempre compreende as etapas de licenciamento e a importância do planejamento, um profissional que sequer foi preparado para isso e que não dispõe de assessoria jurídica ou um consultor para orientá-lo.
Meu desafio diário é persistir para que a gente construa uma fluência maior do audiovisual sobre o mercado musical. Fluência intermediária já permite projetos fluídos, sem tantos desgastes orçamentários no caminho.
O case de sucesso foi a nossa contratação por uma grande marca do segmento de bebidas – a Lemos Consultoria realiza o controle desses processos de licenciamento musical. Ou seja, a marca compreendeu a limitação técnica das agências de conteúdo e, num movimento preventivo, passou a checar cada etapa e textos de licenciamento de obras e fonogramas. E isso é incrível porque desmistifica um pouco dessa posição parasitária que o mercado musical atribui para as marcas.
A marca contrata uma agência na busca de solução criativa e jurídica, e não na intencionalidade de prejudicar esse ou aquele compositor ou intérprete. Acho essa uma das mudanças mais sensíveis que venho testemunhando: marcas atuando como agentes culturais, preservando o direito de autor nas suas produções.
POPline.Biz: A profissão de “Music Supervisor” (supervisor musical) é muito mais compreendida no mercado internacional do que no Brasil. Como você explicaria a importância dessa profissão e atuação na indústria musical brasileira?
RL: Essa é uma pergunta que sempre me fazem, assim como sobre o papel e a figura do showrunner no segmento audiovisual. Posições/cargos maduros da indústria internacional podem nos levar a lugares comparativos, sem compreender como as escolhas são feitas.
Basta considerarmos que as escolas de Cinema no Brasil (me refiro aos cursos universitários) são dedicadas a programas que estudam a história do cinema, mas com poucas ferramentas ou disciplinas sobre gestão executiva. Um processo de formação completamente distinto do ambiente acadêmico norte-americano ou canadense, por exemplo. O aluno faz seu curta-metragem, mas não aprende regras do negócio. Nos cursos de comunicação, geralmente, estamos no mesmo tempo-espaço.
Com o alto investimento das plataformas de streaming audiovisual no Brasil, a posição do supervisor musical ficou mais fortalecida, não apenas pela sugestão de contratação pelo investidor (Star+, Netflix, Amazon Prime Video etc.), mas porque as produtoras foram compreendendo o valor de gestão que isso incorpora a cada projeto, gestão artística e orçamentária, mas em especial pela familiarização destes profissionais com catálogos, acervos e etapas burocráticas destas negociações.
A importância do supervisor musical está aí: força técnica, gestão executiva e conhecimento de narrativa (roteiro) e de acervo musical; quanto mais preparado, mais soluções um projeto recebe.
POPline.Biz: O último relatório da Pro-Música apontou um crescimento expressivo para as receitas provenientes da Sincronização Musical, no entanto, o setor ainda não demonstrou todo o seu potencial de receita. Quais elementos que você acredita que dificultam essa conversão?
RL: Tenho vivenciado esse crescimento expressivo na Artis Cultural desde 2017. Temos hoje um minuto de vídeo para cada três minutos de vida, e isso era impensável anos atrás. O audiovisual conta, fala e atravessa o usuário. E isso tende a crescer porque construímos uma nova maneira de comunicação, pela tela.
Creio que estamos nesse exercício das potências de receitas, mas se tivesse que atribuir um fato de conversão, talvez (e aqui apenas um talvez) seria a posição passiva de editoras e gravadoras. Um diretor artístico/musical de um projeto audiovisual só carrega consigo aquele repertório ou memória music al que desfrutou até ali. Inaugurar relações, apresentar acervos e diminuir distâncias é um caminho, do contrário é uma posição passiva, ou seja, a receita só acontece se a produtora fizer o movimento de solicitação de uso.
Teaser é o verbo provocar, o que fazemos com os cinemas ou séries para atrair o público, talvez seja um bom verbo para maximizar receitas para gravadoras e editoras: provocar relações e ofertas no mercado de criação. Mas é um exercício que exige tempo, equipe e, portanto, investimento.
POPline.Biz: Atualmente, vivemos um período de crise diante da greve dos roteiristas em Hollywood. Esse fato abre portas para muitos outros, envolvendo, principalmente, uma espécie de “platô” ao formato econômico do streaming, com altas concorrências. Como você analisa esse cenário? E quais impactos você acredita que o mercado de streaming sofrerá nos próximos meses?
RL: A greve dos roteiristas se deu no início de maio deste ano, quando a WGA (Writers Guild of America) publicou nota informando que a negociação que travava com a AMPTP (Alliance of Motion Picture and Television Producers) não chegou a um consenso. A partir daí, o sindicato iniciou o período de greve após uma série de negociações mal-sucedidas com os principais conglomerados (Netflix, Amazon, Apple, Disney e Warner, entre outros) envolvendo as remunerações da categoria, que segue sem reajuste desde 2018. O pleito acontece diante da alta inflacionária nos EUA e o impacto da IA no desenvolvimento de roteiros, uma provocação para o legislativo enfrentar o tema e preservar posições nas salas de criação.
No Brasil não temos essa força sindical, apesar do Sindcine-SP atuar fortemente pelas condições de segurança e horas gravadas/dia. Tivemos muita movimentação nesse sentido diante das denúncias de burnout, mas nada perto de alcançar ou promover transformações negociais ou estruturais junto às plataformas.
Fato é que já temos esse platô, um modelo de negócio dos conglomerados que é estruturado como a figura “owner”, proprietário dos ativos. E isso é nítido. Os modelos destas companhias são muito similares, o que os distingue é o vulto de investimento por produção, tomadas de decisões sobre gêneros/DNA dos projetos e fluxo de desembolsos.
Sem sombra de dúvidas, considerando o momento desta entrevista, o VOD ainda não é regulado no Brasil, o cenário é de nos curvarmos ao interesse e a tomada de decisão do investidor, pois essa assimetria regulatória com a televisão paga e aberta é também fortalecedora da vantagem competitiva para o streaming.
A curto prazo, para os próximos meses, admito que não vislumbro mudanças sensíveis, devemos seguir no binômio algoritmos e altos investimentos; e, claro, na expectativa de regulação do VOD no Brasil.
POPline.Biz: De uma forma geral, os artistas observam o direito de sincronização muito vinculado aos grandes catálogos ou a oportunidades pontuais e distantes. Como você analisa esse direito e as chances de diversificação de receitas aos novos artistas?
RL: Para marcas e ações comemorativas (por exemplo, Dia dos Pais, Dia dos Namorados, Natal) é preciso reconhecer que o retorno deste orçamento vai buscar obras e fonogramas palpáveis, o hit de penetração com o consumidor/usuário, esse é o marketing estratégico.
O mesmo acontece no audiovisual, cinemas e séries, com trilha-tema ou trilha-personagem, mas aqui não é essa a regra. Temos, sim, diversificação nas escolhas, às vezes, motivada por limitação orçamentária, outras, porque o audiovisual é comprometido com a narrativa como um todo. Por exemplo, numa série de época a ambientação musical exige um caminho datado; numa série como “Aruanas”, o repertório musical exigia outras características; no longa-metragem, com Lázaro Ramos e Paolla Oliveira, esse “Papai é Pop” exige outra narrativa musical.
Há espaço, sempre há, mas isso também depende de como os novos artistas constroem essas pontes e atuam nas redes sociais. Além, é claro, das recomendações das plataformas de serviços de música que diminuem essa distância. E isso alimenta a importância e papel do supervisor musical, não apenas pela coerência artística, mas pela amplitude e curiosidade para busca de novos nomes na cena musical.
POPline.Biz: O ano de 2023 iniciou a “revolução popular” do acesso às ferramentas de inteligência artificial. Você já possui casos, na Lemos Consultoria, envolvendo o uso de faixas musicais sob essa conjuntura? Como você analisa esse elo entre a arte e a inteligência artificial?
RL: Aqui é preciso cuidado na compreensão da IA, literacia, aprendizado dessa linguagem, porque corremos o risco de interpretar cirurgicamente que a IA está ou ocuparia apenas a fase de produção ou etapa de pós-produção, como na recente ação publicitária da marca Volkswagen com a tecnologia de reconhecimento facial para Elis Regina ao lado da Maria Rita.
Mas a IA vai penetrar, e já penetrou, a comunicação, o modo de criação. Já temos o uso dela na etapa de criação (scripts ágeis, argumentos e roteiros enxutos para ambiente digital etc.). Por isso é valioso distinguir IA para “business” e IA para o sonho/criação. Já temos nas nossas consultas de rotina da produção audiovisual, por exemplo, agências, marcas e produtoras fazendo uso da IA para conceber não apenas na etapa de desenvolvimento, mas para criação de objetos de cena – quadros que integram contexto de cena e banco de imagens. Nosso exercício diário é buscar a inferência causal – quais os riscos de cada caso concreto versus legislação vigente. Na música ainda não vivi essa experiência e estou ansiosa por ela.
Meu caminho começou pela tecnologia e inovação, não sou refratária com relação a IA e a arte. A IA brinca com a finitude e isso é novo sob a ótica jurídica, porque todo registro admite uma nova concepção e não apenas a obra derivada. Temos muito trabalho pela frente, mas não há como debatermos uma rede neural como a IA, que está em construção, sem debater o tripé ético filosófico, sua implantação como tecnologia e regulação.
POPline.Biz: Por fim, quais os seus projetos para os próximos meses? E como você projeta o mercado da sincronização musical, no Brasil, em um ano?
RL: Um deles, e é um projeto interno, é aplicar IA para confecção de contratos, diminuir falhas e concentrar nosso capital intelectual em tarefas não repetitivas. Além, é claro, de aculturar nossos clientes sobre a segurança desta entrega. Em casa, agora, nas produções, temos muitos lançamentos para plataformas de streaming, saldo do volume de filmagens de 2022, que estão em fase de pós e em lançamento para 2023. Gostoso viver as colheitas.
Para daqui a um ano projeto o que já estamos atravessando, a receita de sincronização sensivelmente deslocada para o ambiente digital na publicidade, ações horizontais nas redes sociais (marca e talentos ou criadores de conteúdo), o marketing da experiência como legado das marcas na publicidade, digitais na experiência sensorial do usuário. Para o audiovisual viabilizado pelo streaming, a aceitação de que as temporadas são e já estão menores em número de episódios, portanto, em sua maioria, orçamentos revisitados para toda a produção e música também como consequência, mas com maior oxigenação da Ancine e dos mecanismos de fomento direto (editais).