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Liniker lança disco solo e reflete sobre política, corpos e estigmatização

“Indigo Borboleta Anil” está disponível em todas as plataformas de áudio .

Foto: Caroline Lima

“Indigo Borboleta Anil”, o primeiro álbum solo da Liniker, foi disponibilizado nas plataformas de áudio nesta quinta-feira (9). O disco é o sucessor de “Goela Abaixo”, de 2019, último disco da cantora com sua antiga banda, os Caramelows.

Com produção da própria artista ao lado de Júlio Fejuca e Gustavo Ruiz, as 11 faixas do projeto detalham o momento da cantora. Apesar da contemporaneidade do projeto, Liniker embarcou em um processo de resgate de referências e sonoridades que fizeram parte do seu crescimento artístico.

Liniker lança disco solo e reflete sobre política, corpos e estigmatização. Foto: Caroline Lima

O álbum conta com participações especiais e ilustres: Milton Nascimento, Tássia Reis, DJ Nyack, Tulipa Ruiz, Orquestra Jazz Sinfônica, Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz. Apenas pela lista de colaborações é possível prever a mistura de ritmos e elementos que originaram as faixas que vão do samba-rock ao rap, revestidas pelo irresistível groove.  

Cansada de acompanhar a estigmatização dos artistas LGBTQIA+, Liniker se consagra como uma das maiores vozes da música brasileira com um álbum complexo, moderno e não menos ardente do que seus trabalhos anteriores. Disposta a ocupar lugares negados a corpos como o seu, ela também traz a história do menino Miguel – morto aos cinco anos sob os cuidados da ex-patroa de sua mãe, Mirtes, em junho de 2020 na cidade de Recife – na faixa “Lalange”. 

O POPline conversou com a cantora nesta segunda-feira, dia 6, via videochamada. Confira o bate-papo:

PL: Eu quero começar falando com você sobre Araraquara. Lembro que ouvi falar de você pela primeira vez em 2015 e foi em Ribeirão Preto, lembro que você foi fazer um show na Fábrica de Extintores e depois em Bauru, no Sesc. Araraquara está presente no disco através de “Lalange”…

LINIKER: Está em todas na verdade, está em Lalange, na minha mãe falando em ‘Me Diz Quanto Custa’

PL: Eu queria saber qual a sua relação com essa cidade hoje, com o interior, e como ela influenciou esse disco.

LINIKER: Eu acho que Araraquara está presente em tudo nesse disco porque esse é um disco onde eu celebro o meu quintal, onde eu celebro tudo o que eu vivi na casa da minha avó, tudo o que a minha mãe me deu de referência, tudo o que eu vi e que eu sempre falo tanto nas minhas entrevistas desde 2015. Eu estava com vontade de viver de fato esse som, de fato viver esse groove preto, tudo o que me formou musicalmente. Acho que nesse processo de isolamento também, de tanto tempo distante das pessoas, de tanto tempo distante da minha família, esse disco foi embebido pela minha nostalgia de lembrar como era a casa da minha avó, de lembrar de ir ao Baile do Carmo com a minha mãe, de lembrar de um ponto de vista ‘olha que legal, minha família me deu espaço para tudo isso e hoje em dia eu posso botar isso no meu trabalho’. É uma família periférica, mas o acesso cultural nunca me faltou e principalmente nunca houve o bloqueio do sonho. Minha mãe sempre me falou que eu tinha que fazer o que eu quisesse fazer, o que eu sentisse de verdade. Então, me conectar com um disco onde ele tão meu, tão íntimo…Acho que é um ótimo mergulho para dentro de mim que eu me permiti dar, sabe? Esse groove vem lá da minha casa, por isso Araraquara está tão presente.

Foto: Caroline Lima

PL: Em ‘Lalange‘ você canta “o sonho acabou e eu ainda não encontrei a minha criança”. O que você está querendo dizer com isso? E o que é preciso para que as pessoas encontrem essa criança?

LINIKER: Acho que a quantidade de traumas pelos quais eu passei na vida e que eu carrego na minha história me fizeram esquecer um pouco das coisas que eu vivi quando criança mesmo. E psicologicamente também tem muitas coisas que a gente não consegue entender agora, ‘mas porque eu estou sentindo isso’, mas só quando se tem acesso a um mergulho para dentro de si – e o meu se veio principalmente pela minha conexão com a minha espiritualidade e pela terapia, pela análise nesse sentido. Eu senti que precisava resolver [algo] de lá de trás e, nesse sonho, eu lembro que eu fiquei agoniada, eu falava ‘mas porque você está procurando essa criança e não acha?’. Eu entendi que talvez eu não estivesse procurando a Liniker, sabe? Acho que é esse encontro também de ‘você sempre foi ela, você sempre foi essa’ e talvez por isso você não se encontrou da forma como você se acostumou ser quando era criança. Esse sonho também veio conectado com a morte do Miguel, filho da Mirtes, lá em Recife. Ainda é chocante a dor que a gente sente quando isso acontece com mais uma pessoa preta. E a dor dessa mãe também… A minha mãe já foi empregada doméstica também e, muitas vezes, eu precisei estar com a ela nos trabalhos e a quantidade de racismo e violência que se sofre nestes ambientes é tamanha. Essa música, de certa forma, era uma conexão com a ancestralidade do ponto de vista do meu sonho, do onírico, cantada por mim adulta, falando de uma criança que virou ancestral e o Milton Nascimento sendo a presença do mais velho, de quem já viu, já passou, de quem está aqui ainda e de quem eu sou extremamente admiradora e abastecida no lugar da música. Milton é muito importante para a minha construção musical. Poder ter ele nesse disco, que é esse meu disco solo, de celebração e até nessa música – quando eu digo que parece um sonho mas dói – é poder estar conectada com as minhas raízes. O Milton, assim como Araraquara, está conectado num lugar de raiz, num lugar do qual eu bebi no meu quintal. Ele cantar essa faixa, que é uma letra minha, enquanto compositora, é uma coisa que me deixa muito feliz sabendo o que significam os escritos dele. Esse disco está muito vivo dentro de mim. Não é o lançamento dele no dia 9 que me faz pensar ‘ah, agora acabou o processo, lançou o disco’. Não, muito pelo contrário. Ele tem muitas camadas, ele tem muita coisa, então vai ser um assunto que eu vou trabalhar por um certo tempo e que eu estou muito feliz.

PL: E como surgiu a parceria com o Milton?

LINIKER: Eu fiz uma live com ele no ano passado, em agosto. Era uma live para a Mastercard, uma com a Xênia França, e ali foi a primeira vez que eu vi ele pessoalmente. Eu lembro de cantar para ele e pensar ‘meu deus do céu, você lá de Araraquara cantando na sala do Milton Nascimento, com o Milton Nascimento, que coisa doida assim’. Acho que é o momento em que eu entendo quem é meu fã e me olha assim, porque ali eu fui fã do Milton também. Isso foi muito lindo. Quando eu compus essa música, foi quase como se essa música fosse um diapasão para ser junto com o Milton. Quando eu mandei para o Augusto Nascimento, que é filho e produtor dele, falei ‘Augusto, queria muito cantar com o Bituca, queria pelo menos mostrar a música para ele’. E o Augusto falou ‘claro, ele te ama, quer muito ouvir. Me manda’. Eles resolveram ‘ó, meu pai amou, a gente vai gravar’ e eu falei ‘gente isso vai acontecer’ (risos).

Eu lembro da primeira vez que a gente o recebeu no estúdio, o Gustavo e o Júlio Fejuca (produtores do disco junto com a Liniker), e eu ficamos nos encarando assim ‘meu deus, o que aconteceu? para onde foi isso?’. Para além da grandeza do Milton, tem uma orquestra tocando nove arranjos do disco! Eu sinto que o disco é quase um filme, ele é uma trilha sonora e eu acho que esse lugar das imagens foi uma preocupação e um trabalho também que eu fiz neste processo.

PL: A pandemia influenciou de alguma forma este processo de criação?

LINIKER: Eu queria que a gente se reconectasse com as imagens no momento em que a gente já está tão distante, mas que a nostalgia tem sido um lugar no qual eu estou me alimentando agora, para que eu também pudesse estar mais presente e nascesse um disco num momento como esse que a gente está vivendo, de retrocesso, de dor, de caos, de pandemia, de lockdown, de isolamento, de Bolsonaro. [Um disco] onde a gente pudesse se conectar com a gente e que eu pudesse também me reconectar comigo e me permitir uma coisa que o mercado não permite para corpos como o meu que é estar viva no meu melhor, dando o meu melhor. Não sou só uma artista LGBTQIA+, mas sou uma artista que faço música. É isso que me leva até onde eu estou hoje, é isso que me traz até aqui, é isso que me reconecta com o meu trabalho. Desde que eu apareci na mídia, lancei o “Crua”, “Remonta” e o “Goela Abaixo”, é muito foda como o mercado ainda se diz diverso e com acessibilidade para diversidade, mas ele sempre coloca a gente na caixinha. É como se o único lugar permitido fosse ser LGBTQIA+ e estar nas playlists e comemorações do pride [mês do orgulho], ou nas playlists LGBTs, orgulho LGBT e tal – o que é muito importante, mas estou cansada de ver a gente reduzida quando vejo um monte de discão saindo. Por que não entra no Pop, no Jazz, no samba, no funk? Por que a gente é sempre colocada neste lugar? Esse é um disco onde eu estou cansada de ver as nossas histórias restritas, estou precisando gritar ‘vitoriosas’ lá no final, como na música, sabe? Eu quero viver isso e não só eu, quero olhar para o lado e ver as pessoas também podendo vivenciar isso. Ele é um disco de esperança, de acolhimento e ao mesmo tempo de expansão. Esse disco, diferente dos meus outros, o amor principal não é o outro, sou eu.

PL: Eu lembro de quando eu ouvi “Baby 95” pela primeira vez fiquei muito curioso e fui ler a ficha técnica. Estava lá: Liniker, Mahmundi, Tássia Reis e Tulipa Ruiz. Eu pensei ‘isso é desonesto, não se faz uma coisa dessas’. Como surgiram essas colaborações?

LINIKER: (risos) O lindo dessas pessoas é que, além de eu admirar elas artisticamente, elas são minha família, são minhas amigas, são as pessoas com quem eu troco intimamente. São pessoas que, além de eu admirar profissionalmente e desde antes de ser cantora, a gente também se conheceu no lugar do afeto, no lugar da rede de apoio, no lugar de carinho. Eu agradeço muito porque é um espaço do mercado onde cada uma tá na sua correria, cada uma está na sua construção. Existe muita energia em torno disso, mas a gente se conecta pelo o que a gente tem entre a gente e isso é muito lindo. Tassia, Tulipa e Mahmundi são minhas irmãs, minhas amigonas. Essas músicas aconteceram quando a gente costumava viajar juntas ou quando a gente vai pra casa uma da outra e começa a contar coisas, ou quando a gente se encontrava no bar e ficava conversando. A música sempre fazendo esse elo entre a gente. A gente conseguia distância e falava ‘ó, aqui, sem foto, só entre a gente’, mas sempre tinha um violão e uma cantoria. Eu falava ‘o  nosso encontro é produtivo porque nele existe amor de verdade, a gente está fazendo ele pelo encontro e não pelo hit’. Acho que isso, enquanto arte, enquanto cantoras e enquanto artistas, é uma conexão que eu valorizo muito, de poder me conectar com as pessoas não só pelo feat. ou porque o mercado pede, mas porque eu me sinto conectada de fato a esse coração, sabe? Eu gosto de trabalhar com o coração por isso que tem essas participações aí.

PL: “Diz Quanto Custa” é a minha preferida e nela temos DJ Nyack e Tássia Reis que são nomes que vieram do hip hop, do rap. Qual a sua ligação com o gênero? Queria saber se foi um objetivo seu essa aproximação com o gênero e como está sendo para você explorar esses rítmos? Foi algo natural ou uma tentativa sua de explorar isso?

LINIKER: Para além da Tássia e do Nyack, os coros são da Túlipa. Esse disco, na verdade, o objetivo não é ‘agora a Liniker vai ser uma cantora do rap’, ‘agora a Liniker vai ser uma cantora do hip hop’, mas tudo isso, da música que eu estou trazendo neste disco, vêm dos mesmos lugares. Eu ouvi em Araraquara, eu ouvi no meu quintal. Está conectada com o rap porque o jeito que se toca bateria no rap e o baixo é um groove pelo qual eu queria trazer o meu som pro chão, queria trazer meu som para um outro curso. Acho que essa distância dos palcos e do show, gravar o disco em estúdio, com todos os protocolos, cuidados e medo dessa pandemia, foi uma forma também de praticar isso que eu estava com falta. Eu queria dançar enquanto eu estava gravando. Eu, de fato, estou vivendo esse processo do disco. Eu e o DJ Nyack, nesse sentido, somos muito fãs de samba-rock, a gente é muito fã de Djavan, então abrir todas as nossas referências e falar ‘não, vamos por esse caminho, vamos explorar esse jeito mais quebrado, como é que a gente atualizaria o samba-rock para os dias de hoje’ e a presença da Tássia cantando o verso e de ter escrito essa música comigo também é muito lindo. Acho que eu produzi esse disco em casa. Em casa no sentido daqui de dentro, por isso que ele tem esse lugar tão verdadeiro. Mãe orgulhosa fala ‘meu filho é de verdade sim’ (risos).

PL: E esse processo de separação da sua antiga banda, Os Caramelows, sendo esse o seu primeiro disco solo… Você acham que isso era preciso para que outras sonoridades fossem mais exploradas?

LINIKER: Não sei se era uma questão de necessidade mas, no Liniker e os Caramelows, a gente viveu coisas muito lindas assim… Foi um lugar onde eu cresci artisticamente, pessoalmente, no sentido de relacionamento também. Ali a gente foi uma banda onde, dos 6 anos em que a gente esteve junto, foram todos os dias. O convívio, nesse sentido, e a construção desse projeto foram muito importantes. Até para viver tudo o que eu vivi ali, as experiências que eu tive, para que eu também tivesse referências de lugares de desejo, de construir o meu trabalho onde eu gostaria de estar hoje, porque eu já tive experiências importantes para a minha construção. Então, eu sinto que o fim do projeto, não só para mim mas acredito que para eles também, colocou a gente em um lugar de poder ter outras pesquisas e não que o que a gente teve ali não foi importante. Foi e por isso aconteceu um disco como esse. A necessidade de espaço e a necessidade também, falando por mim, de encontrar novos sons, de me reconectar com outros ritmos, de me apropriar de coisas que eram minhas estavam muito latentes em mim. Para mim, não foi uma banda onde não aconteceram coisas, foram muitas coisas então, assim, que importante ter vivido tudo isso. E a decisão de romper, por mais difícil que seja – porque é isso, você trabalha com muitas pessoas e de repente decide sair por uma questão de coisa própria mesmo – foi muito importante sentir que as minhas boas experiências com eles não me fizeram ter medo da nova coragem que eu precisei reafirmar dentro de mim para produzir esse disco. Acho que esse disco tem que ser porque ele é.

PL: Eu estava lendo uma entrevista sua, de 2019, e naquela ocasião te perguntaram sobre o momento político do país, de intolerância. A gente não tinha ainda a pandemia e nem o caos que estamos vivendo hoje, mas já tínhamos o governo Bolsonaro. Você falou que, para você, não fazia tanta diferença pois o espaço sempre foi negado às pessoas trans. Mudou a forma como você está enxergando o nosso cenário político hoje? Como você pretende lidar com as próximas eleições enquanto artista e pessoa pública?

LINIKER: Eu acho que o fato de ter pessoas LGBTQIA+ eleitas, nesse sentido, de alguns recortes do que rolou nas últimas eleições, faz com que alguns dos direitos que precisam ser garantidos a gente estejam mais instaurados e cuidados por essas pessoas, que estão na linha de frente. Isso ainda, comparado a todo o retrocesso que a gente tem vivido e principalmente olhar para o retrocesso e violência direcionados a corpos transvestigeneres, a corpos não-binários, a corpos LGBTQIA+ continua sendo muito triste principalmente quando a gente faz o recorte de raça. Então, eu não sei o que mudou para positivo ou negativo, mas eu entendo que a gente ainda continua em atividade, sabe? Em atividade no sentido de resistir. E acho que esse retrocesso faz com que a gente repense cada vez mais a nossa forma de entender a humanidade quando o que está eleito está eleito. Enquanto tantos retrocessos foram causados e quantas possibilidades e chances na questão de vacinas, de avanço, foram simplesmente congeladas… Eu sinto que, artisticamente, fazer um disco como esse é importante para que, mesmo com toda dor e todo o retrocesso, a gente não esqueça dos nossos objetivos, que a gente não esqueça para nós mesmas, que estamos vivas, que tá difícil, mas que a gente está tentando e não está só entre a gente. Quando as pessoas me perguntavam se eu não ia fazer um disco político, o fato de ser uma compositora, o fato de estar fazendo um disco neste lugar, o fato de estar apresentando uma qualidade de disco como essa, de trabalho, vai de contraponto a tudo o que falam que o meu corpo não pode. Não só o meu como outros corpos, então isso também é político, isso também é viver, isso também é legitimar um lugar existente que não me deixam ocupar.