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ENTREVISTA: Adriana Calcanhotto navega por ritmos distintos em “Margem” e encerra trilogia sobre o mar

Foto: Leo Aversa

Das batidas do funk carioca às guitarras portuguesas, Adriana Calcanhotto entregou ao seu público um trabalho polirrítmico como nenhum outro em sua discografia. “Margem” chegou às plataformas digitais na última sexta-feira, 11 anos após “Maré” e 21 após “Maritmo“. Apesar de todo este tempo, nesta década a cantora aventurou-se na vida acadêmica em Portugal, lançou gravações ao vivo, novos volumes da série “Partimpim“, tributo a Lupicínio Rodrigues e resgatou o show “A mulher do pau brasil“. Enquanto tocava outros projetos, Adriana experimentou pela primeira vez a sensação de ter tempo e tranquilidade para preparar um disco.

Foto: Leo Aversa

É a primeira vez que lanço um álbum no momento exato em que percebo que ele está pronto“, garante a artista. Acompanhada de Bem Gil (guitarra), Bruno Di Lullo (baixo) e Rafael Rocha (bateria e percussão), Adriana apresenta nove canções, sete delas autorais. As exceções são “Os ilhéus”, um poema de Antonio Cícero musicado por Zé Miguel Wisnik. Já “O príncipe das marés” foi composta por Péricles Cavalcanti. E foi a convivência com o trio desde a turnê de “A mulher do pau brasil” que deixou a gaúcha tranquila e sem pressa de finalizar um trabalho que precisou de muitos anos para ser depurado.

Minhas primeiras memórias sobre sessões de gravação são de que aquilo precisava ser muito rápido, definitivo e acabar logo, pois tudo era muito caro. Então, você ia para o estúdio sabendo o que vai fazer. Lá não era lugar para se perder tempo pensando. A democratização dos meios de produção, de gravação ajudou muito nesse sentido. Eles foram incansáveis e amorosos comigo“, conta Adriana, que já havia encarado uma série de entrevistas ao longo do dia antes de conversar com o POPline.

POPline – Neste trabalho você entrou em estúdio sem ter o material finalizado e pode experimentar timbres, melodias, palavras… Agora com o disco pronto, qual o sentimento que ficou sobre este processo? Ousaria repetir a experiência?
AC – Tem 11 anos desde o “Maré” e talvez, por todo esse tempo, o “Margem” foi um disco feito com muita tranquilidade, porque ninguém nem sabia que eu tava fazendo. Logo não havia pressão, expectativa ou prazo pré-estabelecido. Respondendo sua pergunta, é claro que sim. Toparia esta aventura de novo.

Como os “meninos” Bem Gil, Bruno Di Lullo e Rafael Rocha te convenceram a ficar mais tempo no estúdio testando esse material, sem um prazo muito bem definido?
É tão natural pra eles o exercício de ir para o estúdio e gravar que acabou se tornando algo prazeroso pra mim também. Se eu quisesse, eu poderia fazer minha parte e ir embora, mas não. Era bom ver essa movimentação deles no estúdio. Fazem o que mais gostam, viram noites tocando por puro prazer, conhecem todos os processos, sabem a localização onde é melhor microfonar e tal. Então não se perde muito tempo experimentando o que funciona melhor, mas sim o que se pode experimentar do ponto de vista lúdico. É um negócio muito organizado, mas de uma maneira muito relaxada. Se um deles achasse que daria pra fazer algo melhor, ele ia lá e gravava de novo sem aquela urgência de ter que entregar o estúdio em determinada hora.

Li em algum lugar que, apesar deste novo álbum fechar uma trilogia sobre o mar, este tema não se esgota aqui. Sempre te encantaram os mistérios do mar?
À medida que fui entendendo melhor sobre este fascínio, a coisa foi se desenvolvendo criativamente. Fui adentrando o mundo literário sobre o mar, pesquisando autores que abordam este tema. Tem a poesia portuguesa que é muito forte também. E daí surgiu a ideia desta trilogia, que não impede que eu volte a este assunto algum dia.

Foto: Leo Aversa

A capa deste novo disco é linda e ao mesmo tempo perturbadora. Bateu aquele sentimento de culpa, sabe? Como surgiu a ideia?
Foi o Murilo Alvesso quem fez os clipes e a capa. Eu não tinha uma ideia bem definida para ela. A criação de um disco é bem dinâmica. Sem querer mostrei uma faixa que não era pra mostrar e aí todo mundo se apaixona e acabei gravando. Ainda bem, né? E aí essa ideia foi ficando mais forte. Esse é o estado real dos oceanos hoje em dia. E isso que você falou, sobre a capa te incomodar visualmente, significa que ela cumpriu sua missão.

Sinto que este é um álbum mais rítmico que os antecessores. Tem samba, bossa nova, um trip hop ali no meio, umas programações eletrônicas… Esta mistura foi ocasional?
Mais do que nos meus outros discos, neste eu explicito mais essa polirritmia. Por algum motivo este disco saiu assim. Tem o fato do Rafael [Rocha] amar esta polirritmia e fazer isso muito bem. Ele não é o cara que gosta das notas bem definidas na caixa da bateria e tal. “Margem”, “Lá Lá Lá”, “Ogunté” e “Meu Bonde” são canções que foram feitas assim, de propósito, compostas de maneira diferente de pegar o violão. A todo tempo eu tinha um looping que me permitia ir e voltar e me mostrava caminhos melódicos diferentes, onde não posso alcançar com meu violão que é mais limitado.

Gravar uma canção oriunda do funk não é algo inédito na sua carreira. Mas gravar um funk, de fato, deve surpreender muita gente. Conta um pouquinho como surgiu “Meu Bonde”.
Eu saí de um show em Londres e entrei no ônibus de viagem. Qualquer coisa que repita quatro vezes é uma célula rítmica pra mim. O barulho do ônibus me remetia a uma batida de funk e nunca mais ouvi este som de outra maneira. E resolvi falar da minha vida na estrada mesmo, de forma literal. Gosto muito da batida do funk, acho uma coisa inacreditável e fico com muita pena que o funk seja tratado com tanto preconceito, seguindo a mesma história do samba que já passou por isso. Um ritmo ser rejeitado por ser música “de preto, de pobre” é péssimo. Agora as pessoas estão reclamando que o funk não é mais o mesmo porque aumentou de 130 para 150bpm. Eu acho engraçado isso porque acho natural que as coisas tenham que evoluir.

Seus últimos clipes trazem um quê de espiritualidade muito intrínseca, a preocupação com o meio ambiente e até mesmo a arte, tão vilipendiada no Brasil de agora. Trabalhar esse aspecto audiovisual te encanta de alguma forma?
Me encanta. É um universo que sempre gostei muito. Durante algum tempo quis trabalhar com um acabamento de cinema, com diretores e fotógrafos da área. Mas a gente sabe que aqui mal se consegue fazer cinema. Imagine fazer clipes. Agora tem essa geração do Murilo que tem uma outra pegada. A produção, tanto de música como audiovisual, está muito mais democrática. Você grava seu disco no seu laptop no conforto de casa. Hoje temos mais meninas fazendo seu próprio trabalho dentro de um universo que era muito masculino. O Murilo é mais jovem, de outra geração, mas possui tantas referências de cineastas, artistas e outras linguagens que considero esta parceria como um grande encontro.

E por falar da companhia inspiradora dos mais jovens, lecionar em Coimbra nesses últimos anos afetou de alguma maneira o seu processo criativo?
É um presente que recebi da Universidade de Coimbra. O que posso transmitir é a minha experiência e meu ponto de vista. Porque como escrever canções, verso, estrofe, refrão, tessitura, estrutura, contraste está ao alcance de um clique de qualquer pessoa. Eu gosto de pensar com eles pra que escrever canções, descobrir qual a motivação por trás. Se a gente vai escrever canções que já existem, então não precisa. Então, é um tipo de investigação da canção que afeta minha própria composição. Como professora eu fico lendo, pesquisando, investigando. E acho que o “Margem” já tem um pouco disso que são essas canções cada vez mais metalinguísticas. Jamais ousaria ter sonhado com isso, mas é uma realidade na minha vida agora.

Mesmo tendo familiares que lecionavam?
Bem, meu irmão começou a vida como baterista de thrash metal e agora virou professor. Minha mãe, avó e tia foram professoras. E eu nunca me dei conta que dar aulas é ter que estudar. Quando era mais nova, queria interagir com professores, conhecer assuntos que não estavam previstos para que eu aprendesse em determinado ano. Eu descobri sobre a Semana de Arte Moderna de 1922 sozinha, dois anos antes de aprender na escola. Eu preferia estudar desta forma e abandonei a escola pra estudar música. E agora, não preciso abandonar a música pra poder estudar.

Foto: Leo Aversa

Ao levar um novo trabalho para o palco, qual é a sua percepção sobre o público português e brasileiro?
A plateia brasileira, de um modo geral, é mais ruidosa e mais espontânea. A plateia portuguesa me deixa a sensação de que eles vão assistir e recebem aquilo do jeito que é. Já os brasileiros gostam mais de participar, de interagir.

E os shows?
A turnê começa em agosto e vai até o fim de janeiro, parece. Será uma turnê grande e vamos passar por algumas cidades brasileiras, bem como Estados Unidos, Japão e outros países da Europa. Na sequência retorno pra Coimbra porque tenho o curso pra dar a partir de março do ano que vem.

O Brasil está vivendo um retrocesso social, político, econômico, cultural, educacional… Como artista e cidadã, como você mede o tamanho da sua responsabilidade mediante este cenário?
Estou fazendo minha parte, meu trabalho. Minhas bandeiras sempre foram a educação e o meio ambiente e eu sigo carregando elas. Acredito que este seja um momento passageiro. Tudo é cíclico. Eu sempre viajei muito, sou cosmopolita, gosto de conhecer o mundo. Não costumo pensar em outro lugar diferente de onde estou. Acho que o Brasil é um país da democracia. Elegeram um presidente legitimamente e ele foi eleito democraticamente. E é isso. Nada a declarar.

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