Mulher negra, mãe, empresária, produtora executiva, advogada, política e feminista, é difícil definir Eliane Dias em um só “rótulo”, ela é plural e extremamente singular – tudo ao mesmo tempo. Eleita a melhor empreendedora musical em 2017 pelo “Womens’ Music Event Awards”, Eliane é diretora executiva da Boogie Naipe e cuida da carreira de nada mais, nada menos, que os Racionais MC’s. Casada com Mano Brown, ela traz consigo uma trajetória de luta, obstinação e resistência, que inspira muitas outras mulheres a irem em busca dos seus objetivos.
“Tenho um pensamento de que nós somos responsáveis pelo nosso destino, pelas nossas escolhas, pelas coisas que a gente faz. 99% da nossa vida segue o rumo que a gente escolhe para seguir. Eu sou convicta nisso, de que a gente dá o rumo da nossa vida. Por isso, cada escolha é uma renúncia. Minha vida eu direcionei do jeito que eu queria direcionar”, conta Eliana, em entrevista por telefone com o POPline.Biz é Mundo da Música.
Desde muito pequena a vida de Eliane era cercada por música. A sua mãe trabalhou nas casas de Toquinho, Vinicius de Moraes e Maria Alice (que namorava com Toquinho). Por lá as referências eram claras. Muita MPB, Bossa Nova e Tropicália tocando na vitrola. A empresária revela que todas suas recordações de infância são cercadas por música.
“Eu sou da geração que curtia baile em casa. Passei toda minha adolescência curtindo festinhas de quintal e sempre tinha música o tempo todo. Então, a música está comigo desde que me entendo por gente. Seja de forma indireta, através do trabalho da minha mãe, seja na convivência familiar ou com os meus amigos. Eu sou fruto da música, mesmo não sabendo cantar nada, nem ‘parabéns para você’”, revela bem humorada.
Do Direito à Música
Eliane é advogada por formação e vocação. Ela gosta de ser advogada. Gosta dessa missão de zelar pelos direitos e saber exatamente os seus deveres. E foi com esse conhecimento que ela acreditou que poderia transformar a carreira dos Racionais, tornando-a mais profissional, segura e protegida.
“A minha primeira missão com os Racionais era proteger a banda. Eu via que todas as redes sociais que existiam com o nome deles era falsa. Tinham pessoas que conversavam como se fossem os próprios cantores. Depois parti para a questão dos contratos, dos profissionais que trabalhavam com a banda de forma meio que na amizade, que não exista uma prestação de serviço regular”, conta Eliane.
Depois de arrumar a casa, ela partiu para os projetos. Desde a criação do canal do YouTube a disponibilizar as músicas nas plataformas de streaming. Foi então que surgiu o projeto “Racionais como você nunca viu”. “Tudo que eles não tinham, a gente fez. Não tinha camiseta e boné, era só pirata, nunca tinham feito nada oficial, a gente fez. Não tinha feito turnê, a gente fez”.
Mesmo tendo tido essa experiência única (e visivelmente, bem sucedida) com os Racionais, Eliane não se sente detentora de todo conhecimento acerca do empresariamento musical. “Nunca dá para saber tudo, viu? Ainda falta muita coisa para aprender. O trabalho que eu fiz para os Racionais não me dá base para falar ‘eu sei o que fazer”. Estou sempre cheia de coisas novas para aprender’, revela. E completa exemplificando com mudanças como o pagamento de direitos autorais pelas plataformas de streaming, além de citar temperamento dos artistas: “às vezes a pessoa é até talentosa, mas não é visceral. Entender isso é muito importante”.
Razão x Emoção
Durante toda a conversa com o POPline.Biz é Mundo da Música, Eliane mostrou (e contou) que busca diariamente trazer os assuntos profissionais para o racional – mesmo sendo canceriana, é o ascendente em touro que domina a vida profissional. Um bom exemplo disso é a sua paixão por baixo (instrumento). Mesmo apreciando e cheia de vontade de aprender a tocar, ela revela que não se permitiu esse prazer tão emocional.
“Cheguei a ver escolas, aulas na internet, para ver se eu tinha essa coragem de me dar um prazer tão grande. Porém, eu não me permiti essa leveza, essa fluidez, essa viagem. Eu sou muito racional, não me permito “viajar”. Sou o tipo de pessoa que preciso estar consciente o tempo todo”, conta.
Talvez esteja aí o segredo do sucesso. No seu pulso firme, olhar assertivo e objetivo para as demandas do dia a dia, para ultrapassar todas as barreiras e preconceitos que enfrentou durante toda sua história. “Eu trabalho sob pressão. A pressão é a realidade. Sabe o que é ter oito bandas vivendo uma pandemia? Eu vivo como? Não sofro pressão, não? É pressão o tempo todo”, desabafa a empresária.
Como em toda a indústria do entretenimento, a pandemia não foi (e não está sendo) fácil para Eliane. O escritório da Boogie Naipe fechou no dia 14 de março de 2020, com 18 shows agendados para o Racionais, outros tantos para o Mano Brown, clipe da Alt Niss previsto, planejamento de carreira da Victoria Cerrid sendo iniciado, além da previsão de que iria receber a Liniker para compor seu casting em agosto. “A pressão ficou gigantesca. Eu tive três crises de ansiedade que eu nunca tive antes. Vou ter que fazer terapia para resolver. Pressão, pressão, pressão!”, revela.
“Rodei com meu escritório por toda a casa. Montei no quarto, não deu certo. Montei na sala, não deu certo. Coloquei no outro quarto vazio, não deu certo. Na sacada, não deu certo. Uma coisa louca, de perder a linha, de falar igual ao Lucas (Penteado, do BBB): Não quero mais!”.
Ela conta que no dia que teve a primeira crise de ansiedade estava fechando um negócio internacional e fazendo almoço ao mesmo tempo. “Passei mal, fiquei tonta, a Domenica (filha) me segurou e falou: ‘calma, respira, se está aqui, se concentra aqui’. E foi essa pauleira: assinei contrato, desenvolvi projeto grande que devemos lançar em julho para acontecer em novembro – se tudo der certo, se não der certo pela pandemia eu deixo para o ano que vem”, conta consciente do atual momento da pandemia.
Projetos na pandemia
Com olhar atento para as tendências de consumo, durante a pandemia, mesmo com problemas de logística, atrasos de entrega de materiais e diversas outras dificuldades inerentes ao momento, Eliane tocou o projeto de lançar o box completo de discos em vinil dos Racionais.
“É uma coisa de milhão, é um investimento grande, uma produção grande. Tivemos problema porque estávamos fazendo na Europa, veio o covid e não deu certo. Aí resolvemos produzir no Brasil. No final das contas era para sair 15 de dezembro e saiu 30 de janeiro, porque não tinha niquel para terminar a produção. Só problema!” conta. “Vendemos os discos antecipados, e a galera não recebia. Foi uma coisa louca”, completa.
Outro projeto que estava previsto para sair em 2020 e precisou ser pausado foi o DVD 3D do Racionais. “É um projeto grande, é o segundo DVD deles. Mesmo sabendo que no Sudeste não vende DVD, eu sei que basta sair de São Paulo que no resto do país ainda consome muito CD e DVD!”.
A produtora revelou que, depois do produto pronto, a distribuição digital será pela OneRPM – que é uma das patrocinadoras do DVD. Porém, quando questionada sobre a disponibilização do audiovisual, Eliane revela que ainda não tem uma definição para qual streaming ele vai. “Tenho conversas iniciadas com players que tem interesse, mas ainda não bati o martelo porque quero ver o produto finalizado, para saber se vale a pena eu vender ou se vou por só no YouTube e vender o físico”.
Segundo a empresária, o DVD tem trechos documentais, mas é mais focado no show com cerca de 22 músicas. Ela também confirmou a notícia que vem circulando, desde o final do ano passado, sobre o documentário dos MCs que será veiculado pelo Netflix. “Não posso falar muito sobre ele, mas está sendo feito desde 2014”, revela.
Por dentro da Boogie Naipe
Ao lado de 3 sócios, a Boogie Naipe foi pensada inicialmente para cuidar da carreira solo de Mano Brown e acabou tomando proporções maiores. Hoje a produtora é responsável pela consolidação da carreira de Mano Brown e do grupo Racionais MCs, além da jovem cantora Alt Niss, Filiph Neo, Duquesa e Victoria Cerrid. Em fevereiro de 2020, passou a cuidar, através do selo musical Labbel Records, das carreiras dos artistas de Trap: Danzo e Yunk Vino.
Desde que assumiu a carreira dos Racionais, Eliana assinou a produção executiva do disco Boogie Naipe, de Mano Brown, que foi indicado ao Grammy Latino como melhor disco de língua portuguesa do ano; realizou uma exposição inédita do Racionais em São Paulo que bateu recorde de público; levou Brown para grandes palcos como do Planeta Atlântida e o Lollapalooza; lançou o programa de rádio “Boogie in Braza” que tinha como foco valorizar a música negra brasileira; fez turnê com ingressos esgotados do projeto Racionais 3 Décadas; assinou parceria com a TIDAL; além ter feito parte da curadoria de projetos culturais da Natura. Multifacetada, Eliane também lançou, em 2020, sua marca de roupas: YEBO, voltada para o público feminino.
Seja na produtora ou na sua trajetória de militância, Eliane sempre teve um trabalho voltado para o empoderamento e protagonismo de mulheres negras, que ainda são invisibilizadas no contexto das desigualdades raciais e de gênero no Brasil. Toda a sua história até aqui foi construída por conta da sua essência feminista e da certeza de buscar o que é seu por direito.