“Todos vocês adoram dizer que vamos para o inferno, mas ficam chateados quando eu realmente vou lá. Risos” – foi desta maneira que Lil Nas X rebateu à polêmica em torno de seu novo clipe, “Montero (Call Me By Your Name)”. O vídeo, estreado no dia 26 de março, foi visto 83 milhões de vezes até o fechamento desta matéria. É um marco na carreira de Lil Nas X, mas também um divisor de águas no rap, no hip-hop, na cultura pop e na cultura queer.
“Paul Preciado, autor importante dos estudos queer, diria: ‘o clipe não celebra o pau, celebra o cu’. E isso é uma inversão importante e dá um recado aos gays que celebram demais o lugar do ativo, em detrimento do passivo”, aponta o doutorando em comunicação Rodolfo Viana (PPGCOM/UFF), que pesquisa raça, homossexualidade e cultura pop.
Celebração e orgulho da sexualidade
Historicamente, homens gays que chegaram ao topo das paradas mais ou menos na mesma idade que Lil Nas X (21 anos) fizeram isso se mantendo no armário e cantando sobre mulheres. Os bastidores nebulosos da indústria pop para cantores gays é tema de outro texto aqui no site. A revista Variety tratou do assunto recentemente e destacou que esses artistas, em geral, mantém sua sexualidade como assunto intocável até se estabelecerem.
“Depois de décadas transpondo nossos desejos para as fantasias projetadas por mulheres heterossexuais (ou ocasionalmente bissexuais), aqui está Lil Nas X, oferecendo aos gays um idolo sexual todo seu”, escreveu Adam B. Vary na Variety.
Quando se está no auge, ninguém dá um beijo na boca da serpente de um Jardim do Edén em ruínas, desce de pole dance até o inferno, dança de cueca em cima do Diabo e celebra sua sexualidade da mesma maneira que homens heterossexuais fazem o tempo todo. Ninguém, a não ser Lil Nas X. O clipe de “Montero” segue exatamente esse roteiro, mesclando cultura queer e simbologia cristã. Uma coisa meio Madonna, só que gay.
É um passo importantíssimo – que crava para sempre o nome de Lil Nas X nos estudos sobre mídia de massa e cultura queer. “O clipe não esteriliza: não o transforma na bichinha que não transa. É uma bicha que é muito erótica. Ele é um ser completamente erótico. Achei um escândalo descer do céu até o inferno de pole dance”, sublinha Rodolfo Viana, “ele dá para o Diabo”.
“Montero” expôs os limites da tolerância
The Washington Post comparou o burburinho em torno de “Montero (Call Me By Your Name)” com o causado por Madonna na estreia do clipe de “Like a Prayer” (1989). Como a rainha do pop, Lil Nas X vem sendo chamado de demoníaco, satânico, blasfemo. O ex-jogador da NBA Nick Young disse que baniu as músicas do rapper de sua casa, depois desse clipe.
“Fãs e críticos já sabiam que Lil Nas X era gay (…). Sua homossexualidade foi tolerada por colegas que acreditam que tolerância é uma virtude. Mas o poder de ‘Montero’ – para pessoas queer de todos os tipos – é que expõe os limites da tolerância gay”, o escritor e jornalista Richard Morgan publicou no jornal The Washington Post.
“Tolerar algo é considerá-lo inerentemente inferior, ou pelo menos diferente e anormal. A verdadeira aceitação é saber que não há um parâmetro de comparação com o qual as pessoas devam ser avaliadas”, completou.
O empoderamento do passivo
Por que o clipe incomoda tanto? Porque ele abre várias vertentes de provocações. Lil Nas X sapateia sobre as dicotomias entre masculino e feminino, céu e inferno, anjo e demônio, e corpo e alma. “É uma extravagância em termos de imagens”, diz o doutorando Rodolfo Viana. Lil Nas X, co-diretor do próprio clipe, subverte valores machistas também na dualidade entre passivo e ativo. E isso incomoda até mesmo gays.
“Ele rebola a raba na cara do demônio, com menos pudor do que o próprio Diabo. Seria clichê se ele comesse o Diabo, entende?”, analisa Rodolfo. “Isso é uma inversão importante e dá um recado aos gays que celebram demais o lugar do ativo, em detrimento do passivo”, completa.
“Ele dá uma surra de cu no Diabo. Uma positivação de aspectos eróticos ligados à ideia de um passivo não submisso. Isso não é hegemônico entre os próprios gays. Novamente, até a ideia dos papéis ativo e passivo estão em questionamento”, pontua.
Repercussão no Brasil
O produtor de conteúdo de 19 anos Thiago Torres, dono do canal Chavoso da USP, com mais de no YouTube, destaca a relevância do vídeo de Lil Nas X. “É importante para a comunidade LGBT+, principalmente negra, ver um rapper de sucesso mostrando abertamente sua sexualidade, em um meio que infelizmente ainda é bastante masculino e cis-heteronormativo. Existem, sim, muitos LGBTs (negros ou não) que gostam de rap e que precisam se sentir mais acolhidos nesse meio. Por outro lado, é importante, também, que os héteros-cis o vejam, ouçam um rapper gay e repensem seus conceitos e possíveis pré-conceitos”, diz Thiago.
Na esteira do lançamento de “Montero (Call Me By Your Name”), o produtor de conteúdo Gabriel Mahalem, dono do canal homônimo, com 72 mil inscritos, postou dois vídeos sobre Lil Nas X. Um deles se chamou “O Impacto de Lil Nas X no pop queer”. “Para algumas pessoas, essa consideração de ícone queer ainda é mista porque o Lil tem um público heteronormativo muito forte ainda. Ele, porém tem feito essas pessoas enxergarem que o mundo não é unilateral e óbvio”, pontua o youtuber.
Em seu canal, Gabriel pôde notar como foi a recepção do clipe. “Montero” chegou a ficar em 2º lugar nos trendings do YouTube Brasil, e todo mundo tem uma opinião sobre. “Como o Brasil é um país muito religioso, onde as pessoas são de certa forma obcecadas por qualquer coisa que a religião toca, tiveram várias pessoas condenando a posição dele, isso inclusive vindo de gays que deviam estar olhando por uma perspectiva diferente mesmo com tanta informação disponível”, destaca.
Thiago Torres acredita que a intenção de Lil Nas X era chocar, e ele conseguiu . “A partir desse choque, ele pode levantar muitas reflexões diferentes. Com certeza muitas pessoas cristãs vão achar um absurdo as cenas retratadas com ‘o diabo’, mas eu só vejo como encenações mesmo. E acho que elas têm a intenção de repensar esses conceitos de bem e mal da nossa sociedade, e principalmente ‘desafiar’ essa visão da homossexualidade como algo pecaminoso e diabólico”, conclui.
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